Depois de várias tentativas de apreciação e muitos acordos, a Câmara dos Deputados concluiu na tarde de 2 de setembro a votação do Projeto de Lei 2.337/2021, relativo à reforma do Imposto de Renda (IR). O texto-base já havia sido aprovado na noite do dia 1º, pelo placar de 398 a favor e 77 contra. Agora, o PL segue ao Senado. Enviada pelo governo federal em 25 de junho último, na visão de especialistas, a proposição não traz mudança estrutural necessária ao sistema. Ou seja, o “leão do IR” segue em sua sanha contra trabalhadores, enquanto aos ricos continua dócil.
Embora o PL amplie, a partir do ano-calendário de 2022, a faixa de isenção do Imposto de Renda para Pessoa Física (IRPF) dos atuais R$ 1.903,98 para quem ganha até R$ 2.500,00, corrigindo-a a valores de 2015, mantém a regressividade do IR, com poucas alíquotas – 7,5%, 15%, 22,5% e a máxima de 27,5%.
“Desde 1996, os valores da tabela vêm se distanciando da inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA-IBGE)”, informa o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em nota técnica de 4 de agosto sobre a proposta de reforma. Segundo sua análise, a diferença alcança hoje 113,2%. E mesmo levando-se em conta apenas o período entre 2003 e 2020, situa-se em 52,81%, superando a correção apresentada no PL, de 31,30% – a qual, segundo o governo, ampliará os isentos de 10,7 milhões para 16,3 milhões. Se a tabela fosse ajustada integralmente, ainda de acordo com a nota técnica, mais de 70 milhões de brasileiros não teriam que pagar IR.
Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), enxerga outro problema nessa correção isoladamente: o fato de ela reverberar nas faixas superiores. “Quando se isentam pessoas até R$ 2.500,00, aumenta a parcela a deduzir sobre a renda total nas demais”, explica. Como constata, se não se ampliarem as alíquotas “para 35%, 40%”, isso fará com que ricos paguem ainda menos imposto.
Fagnani observa que a participação do IR no Produto Interno Bruto (PIB) é de 2,5%, quando a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é quatro vezes maior. “É muito baixa porque no Brasil são poucas alíquotas, a maior de 27,5%. Já a média mundial é de 40%. Aqui quem ganha R$ 6 mil ou R$ 600 mil paga sobre a mesma alíquota, o que contraria o princípio liberal de equidade. E a reforma não mexe nisso”, destaca.
O PL, salienta o especialista, não apenas não corrige a regressividade “secular” do sistema tributário brasileiro, como a agrava, ao tentar diminuir a participação do IR na carga total, hoje de 18% – nos Estados Unidos corresponde a 50%.
Ele observa que no caso do Imposto de Renda sobre Pessoas Jurídicas (IRPJ), o relator, deputado federal Celso Sabino (PSDB-PA), chegou a incluir a intenção de reduzi-lo de 15% para até 2,5% em 2023 – o que depois foi alterado por ele para 6,5%, até chegar à diminuição de 8% no texto aprovado. Essa mudança foi parte dos acordos para garantir a aprovação na Câmara.
“A questão central é que a tributação no Brasil se dá muito sobre o consumo de produtos e serviços – 50%, enquanto nos EUA é 17% – e pouco sobre a renda e patrimônio [4,6%]. O Brasil está na contramão do que acontece no mundo”, frisa. Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, concorda: “A base desse mal está na excessiva tributação indireta, sobre o consumo, o que necessariamente faz com que os menos abastados paguem mais. Há ainda demasiada tributação sobre rendas oriundas do trabalho, enquanto aquelas provenientes do capital, como distribuição de lucros e dividendos, são isentas.”
Segundo Fagnani, até o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e OCDE recomendam taxar os mais ricos e elevar o imposto sobre herança e doações. Hoje este último, de âmbito estadual, é limitado a no máximo 8%. O projeto de reforma não contempla nem seu aumento nem grandes fortunas. Além disso, a proposição permite a dedução de juros sobre capital próprio em caso de investimento societário. Já impostos sobre lucros e dividendos aparecem de forma distorcida.
Taxação de lucros e dividendos
Historicamente defendida por especialistas e movimento sindical, a taxação de lucros e dividendos pagos ou creditados por pessoa jurídica estava prevista no texto-base do substitutivo à alíquota de 20%, mas esse índice foi reduzido para 15% com a aprovação na Câmara, no dia 2 de setembro, de destaque apresentado pelo partido Republicanos. Foram 319 votos favoráveis e apenas dois contrários. Todos os demais destaques foram rejeitados pelos parlamentares. Conforme divulgado no portal de notícias da Câmara, entre os que ficam de fora da taxação estão fundos de investimentos em ações, além das micro e pequenas empresas participantes do Simples Nacional e aquelas tributadas pelo lucro presumido com faturamento até o limite de enquadramento nesse regime especial […], hoje equivalente a R$ 4,8 milhões”.
Inicialmente a proposta era de que esses fundos seriam taxados em 5,88%. Para as microempresas, a faixa de isenção seria de R$ 20 mil por mês para lucros distribuídos, o que o Dieese já considerava em sua nota técnica, “muito elevada” e seguindo a gerar distorções, “quando comparada ao tratamento conferido aos rendimentos do trabalho assalariado, que teriam faixa de isenção de apenas R$ 2.500,00, pela mesma proposta”. “Qual a justiça fiscal nisso?”, questiona Fagnani, que continua: “Na renda do trabalho, a tabela é progressiva. Correto seria que o fosse para distribuição na renda do capital.”
Na análise do Dieese, além do tratamento desigual, a proposta servirá de estímulo à “pejotização”. “Uma alternativa seria estabelecer que lucros e dividendos recebidos de micro e pequenas empresas fossem tributados com base na mesma tabela definida para os contribuintes pessoas físicas que recebem rendimentos do trabalho”, sugere o órgão.
Estados e municípios
O lobby empresarial pela não taxação de lucros e dividendos exigiu muitos acordos para votação na Câmara. Um dos problemas era a perda de arrecadação por estados e municípios. Esta foi prevista inicialmente entre cerca de R$ 26 e R$ 27 bilhões pelo Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz). Para tentar reverter isso, houve vários encontros com Sabino e tentativas de articulação junto também ao Ministério da Economia. Segundo notícia publicada no portal O Globo, ainda assim, estão estimadas perdas de R$ 700 milhões
O Imposto de Renda é a base dos fundos de participação dos estados e municípios (FPE/FPM). Ante proposta de redução do IRPJ, propuseram a taxação de lucros e dividendos.
No dia 17 de agosto último, o Comsefaz divulgou carta assinada pelo seu diretor institucional, André Horta Melo, pedindo a rejeição da matéria, para “poder garantir à população dignidade e serviços públicos que condigam com as expectativas democráticas dirigidas aos governos estaduais”. Aponta, nessa linha, que a “última versão do substitutivo ao PL 2.337/21 […] prevê uma inadmissível redução de receitas dos estados, arremessando os entes subnacionais à insolvência fiscal, agravando os efeitos das crises econômica, sanitária e social contra as quais hoje se reúnem esforços para reagir”.
Fagnani conclui: “O momento é de crise, e o Estado precisa ser fortalecido.” Necessita de recursos para financiar programas de renda básica e o Sistema Único de Saúde (SUS), como exemplifica. O caminho, na sua visão, é “aumentar a tributação sobre a renda e o patrimônio. E quando a economia voltar a crescer, reduzir a carga sobre o consumo e a folha de salário”.
Reforma solidária
Em lugar de mudança no IR, especialistas e organizações do setor pleiteiam reforma tributária solidária. Elaborada pela rede Plataforma Política e Social a partir de movimento que reuniu mais de 40 especialistas, encabeçado pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), a proposta, lançada em 2018, foca a questão estrutural de rever a regressividade para se corrigirem tais anomalias. O sistema brasileiro, assim, como ressalta Fagnani, que coordena a rede, deve estar mais alinhado à média dos países da OCDE – o que implica ampliar as alíquotas do IRPF, a tributação sobre a renda e o patrimônio.
Documento-síntese intitulado “A reforma tributária necessária: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira” aponta: “Propomos aqui uma nova tabela de imposto de renda, visando aumentar a progressividade do sistema, com sugestões de mudança na distribuição da carga tributária – diminuição nos impostos indiretos (consumo e serviços) e aumento nos diretos (renda e patrimônio). Nossos estudos comprovam que é possível aumentar a progressividade do sistema tributário e a arrecadação – e assim ajudar a solucionar a crise fiscal brasileira, mesmo sem aumentar os impostos.”
E continua: “Com as mudanças propostas – a depender do grau de maior ou menor progressividade – podemos elevar em até R$ 253,7 bilhões as receitas da tributação da renda e reduzir em até R$ 231,7 bilhões a receita da tributação sobre bens e serviços. Assim como elevar em até R$ 73 bilhões a tributação sobre o patrimônio e reduzir em até R$ 78,7 bilhões a tributação sobre a folha de pagamentos.”
Murilo Pinheiro destaca que o estudo segue “plenamente válido para orientar esse debate e aponta caminhos para um modelo tanto mais justo quanto mais eficiente, colaborando para a solução da crise fiscal, propiciando serviços públicos de qualidade e proteção social, sem que se amplie a carga global”.
“Obviamente”, continua o presidente do SEESP, “como não há milagres, é preciso fazer com que quem tem mais renda e patrimônio contribua com um quinhão maior. Além disso, há que se atuar firmemente contra a sonegação e os diversos mecanismos de evasão fiscal utilizados pelos que pretendem burlar o sistema”.
E vaticina: “Repensar o sistema tributário deve ter como premissa combater a atroz desigualdade social brasileira, mas também se integrar a um plano nacional de desenvolvimento. Não se trata apenas de simplificar processos e alíquotas, mas de usar o sistema de receita pública para induzir crescimento econômico, geração de empregos decentes e avanço científico e tecnológico. Seria fundamental, portanto, que esses princípios norteassem os parlamentares no exame da matéria.”
Fonte: Seesp
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