Talvez nada expresse tão bem o declínio da política institucional brasileira como a ausência de um debate real sobre os preços dos combustíveis e a Petrobras. As consequências do mega-aumento de março último explodem em toda parte. Em abril, o custo médio de um botijão de gás era de R$ 120,00 em 17 estados, chegando a R$ 160,00 em Mato Grosso, por exemplo.
Se o item essencial para cozinhar está caríssimo, não é diferente com os alimentos cujos preços exorbitantes penalizam a todos, pesando obviamente de maneira mais cruel sobre os mais pobres. A relação entre a carestia sentida à mesa e o custo estratosférico da gasolina está na boca do conjunto dos consumidores, mas não se encontrará nos jornais brasileiros ou na agenda de debates do Parlamento o mínimo sinal de um exame efetivo a respeito da política de Preço de Paridade de Importação (PPI), que determina os reajustes.
Adotado em outubro de 2016, quando Michel Temer governava e Brasil e Pedro Parente dirigia a Petrobras, desde então1 o PPI elevou os preços dos combustíveis entre 71,5% (botijão do gás de cozinha) e 73,67% (diesel). Os índices são 2,3 vezes maiores que a alta da inflação no período (30,87%), medida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar dessa enorme disparidade, o PPI parece ter se tornado uma espécie de vaca sagrada. Jair Bolsonaro afirma não ter poderes para alterá-lo. Nenhum dos projetos em tramitação no Congresso sobre preços de combustíveis o questiona (o PL 1.472/2021, aprovado pelo Senado, chega a incorporá-lo em lei). O economista Nelson Barbosa, visto pela mídia como voz influente entre os conselheiros econômicos de Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato de oposição, julga sua lógica correta.
Esse aparente consenso baseia-se num conceito ilusório e num truque retórico. Afirma-se a existência de um “preço internacional dos combustíveis”. E sustenta-se que contrariá-lo significaria oferecer “subsídios” – ou seja, levar o conjunto da sociedade a pagar por produtos que, além de mais consumidos pelos mais ricos, contribuem para o colapso climático. Diante da elevação internacional das cotações de petróleo, na sequência da guerra na Ucrânia, o País deveria, ainda que contrariado, resignar-se.
Ocorre que “preço internacional dos combustíveis” é uma ficção. Há, é claro, um preço de mercado para as compras e vendas internacionais de petróleo bruto. Mas essa tabela demonstra que os preços internos dos derivados praticados por cada país têm enorme variação entre si. Ainda que excluídos Venezuela, Irã e Líbia (onde as cotações são irrisórias), a gasolina, por exemplo, oscila entre US$ 0,13 [R$ 0,63] por litro e US$ 2,831 [R$ 14,43]. Ou seja, a variação se dá numa escala de 1 para 23. É óbvio, portanto, que não existe nem sombra de um preço “natural” para os combustíveis.
Um exame mais atento da tabela permite enxergar, grosso modo, dois padrões. Os países que dependem do petróleo importado – em especial os localizados na Europa – cobram caro pelos derivados. É o caso, por exemplo, da Suécia (US$ 2,294 ou R$ 11,69 por litro da gasolina), Alemanha (US$ 2,183 ou R$ 11,13), Itália (US$ 2,116 ou R$ 10,79), França (US$ 2,095 ou R$ 10,68) ou Espanha (US$ 1,90 ou R$ 9,69). Os Estados Unidos, que produzem e consomem muito, estão numa espécie de meio-caminho (US$ 1,178 ou R$ 5,70). Vale notar que, em todos esses países, embora mais alto nominalmente, o preço do combustível é muito inferior ao brasileiro, se ponderado o poder aquisitivo de cada sociedade2.
Mas nos países que exportam ou são autossuficientes em petróleo as cotações são totalmente distintas. É o caso de Angola (US$ 0,337 ou R$ 1,71), Rússia (US$ 0,373 ou R$ 1,90), Nigéria (US$ 0,40 ou R$ 2,04), Malásia (US$ 0,491 ou R$ 2,50 ) Iraque (US$ 0,514 ou R$ 2,62 ) ou Colômbia (US$ 0,624 ou R$ 3,18)3.
Abundância para quê?
Em que grupo está o Brasil? A descoberta das jazidas do pré-sal produziu, a partir de 2013, um grande salto da produção – de 2 para 2,9 milhões de barris por dia, em apenas oito anos. Mas essa formação geológica, onde estão algumas das descobertas petrolíferas mais importantes das últimas duas décadas, pode conter, segundo estudos independentes, 176 bilhões de barris ou mais – o que colocaria o País na condição de dono da terceira maior reserva do mundo. Graças a ela, a partir de 2014, o Brasil tornou-se importante exportador de petróleo, chegando a 1,3 milhão de barris por dia em 2021.
E há duas condições especiais. A primeira é a abundância incomum do pré-sal, de onde vêm cerca de 70% do petróleo brasileiro. Um dos campos, o de Búzios, tornou-se o maior do mundo em águas profundas. Só dele foram extraídos 674 mil barris num único dia de junho de 2020 – mais que toda a produção da Índia ou do Egito. A previsão é chegar, em alguns anos, a 2 milhões de barris de petróleo ultraleve, o de melhor qualidade.
A segunda condição é a excelência tecnológica e capacidade de inovação da Petrobras, reconhecida por seguidos prêmios internacionais. Em Búzios, por exemplo, a extração teve de vencer uma lâmina d’água de 1.900 metros. Graças a esses dois fatores, o petróleo é retirado a preços extraordinariamente baixos: entre US$ 5 e US$ 6 por barril no pré-sal – contra mais de US$ 40 do petróleo extraído por fragmentação rochosa (fracking) nos Estados Unidos.
Com base nesses fatos, o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Felipe Coutinho, estimou, em novembro do ano passado, a gigantesca diferença entre os preços de produção do petróleo brasileiro e os impostos à sociedade pelo PPI. Coutinho notou que o preço médio de extração (lifting) subia, após o acréscimo dos impostos e custos de frete, a US$ 20,16 o barril. Somando-se refino, chegava-se a, no máximo, US$ 27 o barril. Sabendo que este equivale a 159 litros e que a cotação do dólar, à época, era semelhante à de hoje (R$ 5,10), chegava-se ao custo médio, nas refinarias da Petrobras, de R$ 0,90 por litro de derivado de petróleo. Com o aumento imposto em 10 de março, a companhia passou a cobrar dos distribuidores R$ 3,86 pela gasolina e R$ 4,51 pelo diesel. Sua margem de ganho atingiu, respectivamente, 328% e 401%.
Fica claro, por esses números, como é absurda e interesseira a ideia de que é preciso subsidiar os combustíveis para reduzir o preço final pago pela população. Basta anular o PPI e adotar uma política de preços que leve em conta fatores como o poder aquisitivo dos brasileiros, o controle da inflação, a necessidade de desestimular o transporte individual e transferir recursos para a transição energética e, obviamente, o justo lucro da Petrobras. Os preços baixarão de modo expressivo, sem que a sociedade tenha de dispender, para isso, um único centavo.
O buraco é mais embaixo
Mas quais seriam, então, os objetivos do PPI? Ele expressaria um desejo sádico do ministro da Economia, Paulo Guedes, de obrigar 14 milhões de famílias a voltarem no tempo e a cozinhar com lenha? Ou de impor novas perdas a categorias já submetidas a trabalho exaustivo – como os motoristas de aplicativos e os caminhoneiros?
O PPI é a ponta de lança de um conjunto de políticas aparentemente disparatadas – mas necessárias, em seu conjunto, para eliminar o caráter de empresa pública da Petrobras. O efeito mais imediato é desnacionalizar o refino de petróleo. Os preços abusivos estimulam, desde já, empresas estrangeiras a importarem combustíveis (o que é totalmente desnecessário). Mais adiante, viabilizarão a venda das refinarias brasileiras, já alardeada pela direção da estatal e iniciada, com a venda da RLAN baiana ao fundo Mubadala Capital, do emirado de Abu Dhabi.
Os objetivos a longo prazo são ainda mais graves e estão sendo executados. Se perder seu caráter de empresa pública – se continuar afastando-se de atividades essenciais à sociedade, como a petroquímica, a produção de fertilizantes, a distribuição de combustíveis, a pesquisa científica, o estímulo à indústria nacional ou a transição energética –, a Petrobras perderá, mais que a viabilidade econômica, o sentido de existir. A descoberta do pré-sal terá sido, para a empresa, a maldição que a destruiu. E o Brasil terá se privado das imensas possibilidades que a riqueza petroleira oferece para a reconstrução nacional.
No entanto, a captura da Petrobras é uma obra inacabada e frágil. Do ponto de vista tecnológico, a empresa conserva a excelência que lhe permitiu localizar e explorar jazidas em profundidades muito além das alcançadas por outras petroleiras – daí a descoberta das reservas na camada do pré-sal. Nos planos legal e jurídico, todo o processo do desmonte pode ser revertido. A companhia é, segundo a legislação brasileira, uma empresa com finalidade clara: explorar e processar a riqueza petrolífera do País em favor dos interesses coletivos da sociedade. Essa definição dá bases para que um novo governo recompre a maioria das ações da companhia e recupere suas subsidiárias entregues a capitais privados.
Fortalecida, poderá desempenhar papéis mais amplos do que os realizados até agora. Um deles é agir contra a regressão produtiva – estimulando, por meio de suas compras, um vasto setor industrial. Outro: liderar a transição energética, investindo na expansão de fontes limpas, como a fotovoltaica e a eólica. É preciso ampliar, além disso, a distribuição social da riqueza petroleira. Mudanças na legislação podem permitir que ela fortaleça substancialmente os fundos públicos que financiam saúde, educação, ciência e tecnologia.
Para alcançar tais objetivos, contudo, será necessário despertar a opinião pública e mobilizar a sociedade para que faça pressão efetiva sobre os dirigentes políticos do País.
*A versão original deste conteúdo foi produzida para Outras Palavras, que deu início em 26 de abril à série de debates “Petrobras: do desmonte às alternativas”. Confira no canal do portal no Youtube.
_________Notas____________
1Em outubro de 2016, o botijão custava R$ 69,21; a gasolina, R$ 4,458; e o diesel, R$ 3,76. A Agência Nacional do Petróleo ainda não divulgou os valores médios dos combustíveis, no varejo, após o mega-aumento. Para o cálculo, utilizamos os valores anteriores, acrescidos dos percentuais de reajuste nas refinarias determinado em 10 de março pela Petrobras.
2A renda per capita dos norte-americanos é 5,95 vezes maior que a dos brasileiros. A dos suecos, 5,27 vezes maior; a dos alemães, 4,49; a dos franceses, 3,91; a dos italianos, 3,25; e a dos espanhóis, 2,87 vezes.
3Há uma única exceção, entre os grandes exportadores: a Noruega, em que os derivados estão dentro do padrão europeu devido ao uso consciente – e maciço – da riqueza petrolífera para financiar a transição energética.
Antonio Martins
Fonte: FNE