Especialistas em direito previdenciário que se debruçam sobre a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo estão se deparando com temas que dizem respeito à área trabalhista.
Advogados ouvidos pela Folha apontam que existe uma espécie de reforma trabalhista dentro da previdenciária.
Para Ives Gandra da Silva Martins Filho, ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), a reforma da Previdência segue na linha do ajuste fiscal do teto de gastos quanto ao setor público e na linha da reforma trabalhista quanto ao setor privado.
“O novo governo está completando o que o anterior não conseguiu concluir”, diz.
As medidas identificadas até agora indicam a intenção de reduzir os custos de contratação do trabalhador formal, uma antiga reivindicação do setor empresarial.
Uma das mudanças com maior potencial de impacto envolve o custo previdenciário que recai sobre a folha de pagamento —e soma cerca de 30% do custo da mão de obra.
Pelo texto da reforma de Jair Bolsonaro (PSL) que está no Congresso, empregados poderão escolher se vão contribuir pelo atual regime de Previdência —de repartição, em que as pessoas na ativa sustentam o benefício dos aposentados— ou por um novo modelo de capitalização, no qual cada trabalhador faz sua
própria poupança.
A capitalização ainda seria regulamentada por lei complementar, mas a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Previdência já abre espaço para que o recolhimento dos empregadores seja facultativo nesse regime.
Hoje, o segurado pelo INSS recolhe de 8% a 11% sobre seu salário de contribuição, dependendo do valor da remuneração, enquanto o empresário recolhe 20% sobre a massa dos salários dos empregados.
A leitura é que a contribuição do empregador não será aplicada sobre o salário do funcionário que estiver no regime de capitalização, o que reduziria o custo de mão de obra para a empresa.
O trabalhador, por sua vez, ainda contribuiria, mas dentro de regras e com valores a serem definidos. A princípio, essas medidas iriam contra o objetivo da reforma de reduzir o rombo na Previdência, observa Maurício Tanabe, sócio do Campos Mellos Advogados.
Segundo ele, porém, o governo aposta que a queda do custo da mão de obra e a desburocratização vão trazer mais trabalhadores para a formalidade, aumentando a base de contribuição.
“Alinhado com o discurso de campanha, o governo aproveitou a reforma da Previdência para inserir dispositivos que diminuem a carga tributária da mão de obra formal”, diz.
A PEC traz também um norte para a contribuição no contrato intermitente (sem jornada fixa), que ficou de fora da reforma trabalhista de Michel Temer (MDB). De acordo com especialistas, a regra confere segurança para empregador e trabalhador.
Pela proposta, empregados que não alcançarem a contribuição mínima mensal exigida para sua categoria poderão usar o valor de uma contribuição que exceder o limite para cobrir essa diferença, ou agrupar recolhimentos baixos para atingir o valor necessário.
Hoje, os trabalhadores precisam fazer essa complementação do próprio bolso.
“O texto deixou claro o que vai acontecer. Do lado do empresário, o que gerava insegurança era saber se aquele trabalhador estaria ou não assegurado pela Previdência no caso de um acidente de trabalho, por exemplo”, diz Sarina Manata, assessora jurídica da FecomercioSP (federação do setor em São Paulo).
Bolsonaro e sua equipe econômica, capitaneada pelo ministro Paulo Guedes, sinalizam desde o ano passado a intenção de aprofundar a flexibilização das leis trabalhistas iniciada por Temer, quando uma reforma alterou mais de cem pontos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
De largada, Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, colocando parte de suas atribuições sob as asas de Guedes, que, por sua vez, tirou a Previdência da Receita.
Para assumir sua Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, o ministro escolheu Rogério Marinho (PSDB-RN), que foi deputado federal e relator da reforma trabalhista.
Em nota, a secretaria disse que a PEC “propõe ajustes pontuais em temas de contato entre Previdência e trabalho”, mas disse não ser o objetivo antecipar medidas na área de trabalho e emprego.
Luiz Guilherme Migliora, sócio do Veirano Advogados, diz ver similaridades entre as linhas propostas para a reforma da Previdência de agora e a trabalhista de 2017 —que quis reduzir custos empresariais e flexibilizar acordos.
“Estamos falando de um governo [Bolsonaro] que quer criar mecanismos para reduzir o custo dos empresários, o chamado ‘custo Brasil’, e a contribuição previdenciária é um grande elemento desse custo.”
Sólon Cunha, sócio do Mattos Filho e professor da FGV Direito SP, ressalta que referências ao mundo do trabalho aparecem também na proposta da reforma de isentar empresas de recolher o FGTS de aposentados que continuam trabalhando e pagar multa do fundo em caso de demissão desses empregados.
Cunha lembra que a reforma trabalhista impôs uma quarentena para contratados virarem terceirizados, mas excluiu os já aposentados da regra. “Isso foi uma primeira porta para terceirizar o aposentado imediatamente. A segunda acaba de ser aberta com a questão da multa.”
Marinho já indicou que o governo estuda ainda atrelar o sistema de capitalização a uma nova modalidade de contrato, a carteira verde e amarela.
A ideia é que ela garanta os direitos trabalhistas da Constituição, que são mais genéricos, oferecendo maior liberdade em sua aplicação.
Com menos custos, especialistas apontam que, na prática, a opção por uma carteira e seu respectivo regime previdenciário será menos do trabalhador e mais da empresa.
Sem um controle, “a tendência é a nova carteira se tornar a realidade”, diz Ivani Contini Bramante, desembargadora do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo e região) e professora da Faculdade de Direito de São Bernardo.
Otávio Pinto e Silva, sócio do Siqueira Castro e professor da USP, lembra a instituição do FGTS, que tornou letra morta artigo da CLT assegurando estabilidade ao trabalhador com dez anos ou mais de empresa.
“Ele teria a opção de escolher. Na prática, ou concordava com o fundo ou não teria o emprego. É importante falar em alternativas para as empresas gerirem suas relações, mas, sem proteções mínimas, cria-se um mecanismo de negociação em que, muitas vezes, o trabalhador não tem opção de escolha real.”
Esses limites definidos pelo Estado, para especialistas, poderiam incluir a validade da carteira verde e amarela apenas para o primeiro emprego, limitação de prazo do contrato, porte das empresas elegíveis e percentual de cargos contratados pela carteira.
“Não existe negociação com uma pessoa em inferioridade técnica, econômica e jurídica. Se deixar o mercado regular, vamos ver o domínio do mais forte”, diz Jorge Pinheiro Castelo, advogado trabalhista e conselheiro estadual da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).
PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Aumentar a geração de emprego sem investir na qualificação de profissionais pode ser frágil, pondera Ricardo Basaglia, diretor da consultoria de recrutamento Michael Page.
“A experiência e a capacidade de gerar valor para a empresa vão sustentar uma relação de força na negociação de oferta de trabalho. Quando o candidato tem menos qualificação, acaba tendo também menos poder de barganha, é a lei da oferta e procura”, diz.
Na avaliação de Vólia Bomfim, do Tocantins Advogados e desembargadora aposentada do TRT 1 (Rio de Janeiro), flexibilizar alguns direitos para estimular quem encontra dificuldade para entrar no mercado é válido.
A iniciativa legal, ela diz, deveria ser provisória, como a lei de contrato temporário do governo FHC e a de proteção ao emprego de Dilma Rousseff.
Se for uma lei definitiva, seria preciso oferecer contrapartidas –como na Lei do Aprendiz, que permite, por exemplo, recolhimento de só 2% do FGTS, mas exige investimentos na formação do funcionário. “Se não tiver contrapartida, vejo como uma lei discriminatória, que trataria uns melhor do que outros”, afirma.
Cristiano Paixão, procurador regional do Ministério Público do Trabalho (MPT), entende que a implementação da carteira verde fere o princípio da isonomia –todos são iguais perante a lei, segundo o artigo 5º da Constituição.
“Na minha opinião, é inconstitucional porque significa tratar situações idênticas de trabalhadores de formas diferentes”, afirma.
BENEFÍCIOS NA REFORMA PARA OS EMPREGADORES
Desoneração da folha
* A PEC da reforma abre espaço para que o recolhimento dos empregadores seja facultativo na capitalização
* Hoje, o segurado pelo INSS recolhe de 8% a 11% sobre seu salário de contribuição. Já o empregador recolhe, em sua maioria, 20% sobre a massa dos salários
* Se a contribuição do empregador não for aplicada sobre o salário do funcionário da capitalização, o custo de mão de obra para a empresa cairá
Contrato intermitente
* A proposta regulamenta a contribuição previdenciária do trabalhador sem jornada fixa, tema que não foi contemplado na reforma trabalhista de Michel Temer (MDB)
* Empregados que não alcançarem a contribuição mínima mensal exigida para sua categoria poderão ou usar o valor de uma contribuição que exceder o limite para cobrir essa diferença ou agrupar recolhimentos baixos para atingir o valor necessário
* Segundo especialista, medida gerava insegurança para saber se o trabalhador teria direito à cobertura previdenciária em caso de acidente de trabalho
Desobrigação do FGTS
* A reforma acaba com a multa para os aposentados que forem demitidos após a aprovação das novas regras
* Parte dos aposentados também perderá os depósitos mensais do FGTS
* As medidas ampliariam o uso da mão de obra dos mais velhos
Fonte: Folha SP