No artigo “TICs para o bem e para o mal”, divulgado no site Teleco, em 12/07/2013, e inserido no meu livro “Artigos, análises e tutoriais de telecomunicações”, comentei sobre a invasão das diversas formas de Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs). Pois bem, ou, pois mal: No recente dia 15 de março, com câmera instalada em seu capacete, um atirador transmitiu ao vivo pela internet o terrível massacre que cometeu na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, em duas mesquitas, nas quais matou 49 pessoas e feriu pelo menos outras 48 pessoas.
A transmissão ao vivo nas redes sociais feita pelo atirador permitiu vê-lo disparando nos frequentadores da mesquita Al-Noor. As imagens se confundem com um jogo de videogame. Na segunda mesquita atacada, a Linwood, a cinco quilômetros da primeira, oito pessoas morreram.
Antes de agir, o atirador divulgou nas redes sociais e em fóruns específicos um manifesto, que provocou críticas sobre a disseminação de conteúdo racista e a falta de ação de empresas de tecnologia em coibir as mensagens extremistas. A rapidez com que o conteúdo do manifesto e a transmissão do vídeo dos ataques se espalhou pelo mundo deixaram as gigantes da internet em maus lençóis (in trouble).
Quando as empresas de internet derrubaram as contas vinculadas ao atirador, foi tarde, pois muitos internautas que assistiram ao vivo a transmissão já estavam reproduzindo o seu conteúdo, sem que fossem detectados pelos algoritmos das plataformas das empresas. O investimento dessas empresas em inteligência artificial, visando impedir a disseminação desse tipo de conteúdo, não se mostrou eficaz.
O atirador, um australiano de 28 anos, que há três meses vive na Nova Zelândia, foi preso e indiciado pelos assassinatos decorridos no ataque, o pior da história desse país, onde os policiais dificilmente carregam armas, porém permite uma certa facilidade na venda de armas.
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Ardern, ao condenar o atentado, relatou que o atirador adquiriu legalmente as armas usadas nos ataques. Segundo estimativas, na Nova Zelândia há uma arma de fogo para cada três habitantes. A premiê já antecipou que as leis de armas no país terão profundas mudanças.
Vivemos a ocasião da “Internet das Coisas”, mas em curto espaço de tempo duas terríveis ações (uma no Brasil, na escola pública de Suzano, São Paulo, e a outra na Nova Zelândia, nas duas mesquitas de Christchurch) caracterizaram ocasiões de “Internet das Trevas”.
Foi nessa segunda condição que ocorreu a discussão, o planejamento e, até a transmissão ao vivo (caso da Nova Zelândia) do sacrifício de vidas humanas. Com as TICs ocupando cada vez mais espaço para o “bem” e para o “mal”, elas se tornam propícias para ações bélicas, terroristas e de inteligência no globo terrestre. A questão é sofisticada e, portanto, requer solução com maior sofisticação. Por oportuna, a pergunta que se faz é: as Nações-Estados estão preparadas para lidar com o tema?
E mais, como fica o princípio de “Neutralidade de Rede”, onde todas as informações devem ser tratadas da mesma forma, garantindo o livre acesso a qualquer tipo de conteúdo sem ferir a autonomia do usuário e não discriminar aplicações por consumo de banda larga? Não estaria indo além do razoável?
Medidas que venham a ser ultimadas isoladamente por alguma nação não assegurarão totalmente a segurança do uso das TICs, uma vez que em qualquer país, por não se isolar do mundo, haverá sempre o risco da quebra da inviolabilidade e a invasão das diversas formas de TICs.
Projetos poderão minimizar os problemas, mas não garantirão que as medidas acabem com a vulnerabilidade das TICs, porque, inexoravelmente, as redes continuarão de âmbito mundial.Diante de certas ações bélicas, terroristas e de inteligência nas redes sociais e em fóruns específicos, tudo factível pela inovação tecnológica, faltam regras universais que assegurem direitos e garantias individuais e coletivas no uso das TICs. Tais regras devem ser amplamente debatidas e, se já existem, que sejam revistas e ampliadas.
Pois, como diz o sociólogo Manuel Castells, as redes sociais estão além do controle dos governos. Diz mais Castells, é nos espaços das redes sociais que estão nascendo as sociedades do século XXI. Por fim, destaco o físico Stephen Hawking que em “Breves respostas para grandes questões” afirmou: “Depois de inventar o fogo e meter os pés pelas mãos com ele, inventamos o extintor de incêndio. Com tecnologias mais poderosas como armas nucleares, biologia sintética e inteligência artificial avançada, devemos planejar com antecedência e tentar fazer as coisas direito da primeira vez, porque ela poderá ser nossa última chance. Nosso futuro é uma corrida entre o potencial de crescimento da tecnologia e nossa sabedoria ao usá-la. Precisamos garantir que a sabedoria vença”.
* Juarez Quadros Nascimento é Engenheiro Eletricista, ex-ministro de Estado das Comunicações e ex-presidente da Anatel.
Fonte: Convergência Digital