Os incêndios que atingiram a Cinemateca, no bairro paulistano da Vila Leopoldina, no mês de julho último, e o Museu Nacional, na capital fluminense, em setembro de 2018, revelam trágico capítulo de uma crônica do desastre anunciado. Como pano de fundo, a ausência de engenharia de manutenção preventiva e corretiva. A perda é imensurável, como ilustram os desastres recentes: estimam-se em cerca de 220 rolos do acervo cinematográfico brasileiro no primeiro caso e 20 milhões de peças que marcam a história da humanidade no segundo.
A falta de manutenção é, na visão de Nestor Tupinambá, diretor do SEESP, o “fio condutor ou denominador comum em todos os acontecimentos que têm levado à erosão da memória brasileira”.
No que chama de “cronologia da destruição”, somente na última década, ele inclui na lista incêndios em outros patrimônios culturais, como no Memorial da América Latina e no Museu de Ciências Naturais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Belo Horizonte – ambos em 2013 –, no Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e no Museu da Língua Portuguesa, os dois na Capital, respectivamente nos anos de 2014 e 2015. “Quase todos decorrentes de curtos circuitos e verdadeiras ‘gambiarras’ elétricas, incabíveis na guarda desses tesouros”, frisa.
Marcelo Lima, diretor-geral do Instituto Sprinkler Brasil, ratifica: “O setor tem muito problema de subsistência, e a manutenção é uma das que sofrem muito rapidamente.” Ele chama atenção ainda para receio entre administradores de que o sistema de incêndio não vá prevenir ocorrências e ainda possa danificar o acervo ou descaracterizar a edificação.
“A tubulação fica escondida no teto. Os chuveirinhos, que são os sprinklers, vão abrir somente sobre o local onde começa o fogo. Nos Estados Unidos, 93% dos incêndios são controlados por três bicos, o equivalente a mais ou menos 30 metros quadrados.” Além disso, garante que é possível recuperar uma peça molhada; queimada não.
Segundo Lima, na reconstrução do Memorial da América Latina e do Museu da Língua Portuguesa, estes foram instalados. O mesmo está sendo feito no Museu Nacional. Também na reforma do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e do Museu Paulista. Contudo, alerta: se não houver manutenção, o sistema pode não funcionar adequadamente.
Conforme Celso Atienza, diretor do SEESP e ex-presidente da Associação Paulista de Engenheiros de Segurança do Trabalho (Apaest), seria necessário ter “um programa de manutenção preventiva dos equipamentos culturais”, não só predial, mas também pensado para preservação dos acervos, que muitas vezes reúnem peças cujos materiais são altamente inflamáveis.
A peculiaridade, para o especialista, exigiria a presença obrigatória, sobretudo nos museus, de engenheiros de segurança para atenção aos pequenos detalhes e avaliação dos riscos, como carga de incêndio, presença ou não de geradores de emergência, sistemas e medidas de proteção, combate e detecção de fumaça e fogo, bem como aspectos relativos a iluminação e adaptações que são feitas.
Sobre estas últimas, nas quais se enquadra o manuseio de obras do acervo, como consta do volume “Segurança em Museus”, publicado em 2011 pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a “probabilidade de ocorrência de um acidente é ainda maior caso o museu não possua um programa permanente de manutenção preventiva da edificação, que garanta a segurança de uso dos seus ambientes”.
O trabalho é de autoria das professoras da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Katia Beatris Rovaron Moreira e Rosaria Ono. Esta última é atualmente diretora do Museu Paulista. Ela chama atenção para a necessidade de uma cultura de conservação e preservação no Brasil.
Análise minuciosa
Na mesma linha, o engenheiro Carlos Cotta, consultor especialista na área de segurança contra incêndio, corrobora. Para ele, é preciso análise de risco, projeto executivo e solução de engenharia para cada caso, não genérica para todos os equipamentos culturais.
Outra questão complexa levantada por ele é de edificações tombadas que não foram projetadas para serem museus. “Até a avaliação do prédio é extremamente importante e necessita análise aprimorada para garantir a proteção. Além da falta de manutenção, o Memorial da América Latina, por exemplo, quando pegou fogo, tinha comportamento de túnel, sem janelas, sem portas ou escadas nas laterais.”
Como observa o engenheiro civil Antonio Fernando Berto, gerente técnico do Laboratório de Segurança ao Fogo e a Explosões do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), enquanto no Museu Nacional não havia sequer Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), o Memorial dispunha deste. “Apesar disso, o sistema de chuveiros automáticos de supressão e controle de incêndio (sprinklers) instalado no auditório falhou, permitindo que o incêndio se desenvolvesse livremente.”
Conforme ele, duas hipóteses podem ser aventadas no caso: “na primeira, o sistema estava inoperante ou apresentava baixa confiabilidade, e o AVCB foi erroneamente concedido; na segunda situação, era funcional na ocasião da vistoria, mas deteriorou-se em razão de não ser adequadamente mantido pelo responsável pelo uso da edificação”.
Berto é categórico: “Fica evidente que a concessão do AVCB, de modo geral, não se dá por meio de procedimentos rigorosos de aceitação técnica dos sistemas de proteção contra incêndio, mas sim a partir de meros atestados dos responsáveis pela obra/instalação do sistema, que relatam boas condições do sistema e, correspondentemente, emitem ARTs/RRTs [Anotações e Registros de Responsabilidade Técnica], em muitas situações, sem a devida comprovação técnica.”
O gerente técnico do IPT vaticina: “Enquanto essa situação não for resolvida, o problema dos incêndios no Brasil só fará aumentar. Os edifícios que se constituem ou abrigam patrimônios históricos, culturais/artísticos e científicos, pela situação frágil em que se encontram, em termos de segurança contra incêndio, continuarão a ser afetados, dando prosseguimento à escalada até aqui observada.”
Na opinião de Cotta, a questão é que o que se faz habitualmente é seguir determinadas regras mínimas, sem preocupação com as peculiaridades da edificação. “Os AVCBs são pregados em cima de um projeto básico legal, com proteções baseadas em tabelinhas. Consequentemente, em 90% das edificações que os têm e atendo, há problemas.”
Ele ilustra: “No Museu Nacional não tinha sequer água [para combater o incêndio]. Tem sistema que é tão ruim que fica soando o alarme direto, e o pessoal vai lá e desliga. E há outros tão bons que identificam até vícios nas edificações, mas falta treinamento de pessoal.” Assim, conclui: “Falta planejamento e capacitação técnica.”
Atualização e restauro
Lima joga luz sobre outro problema: “São edificações muito antigas, e a legislação relativa a incêndios é válida somente para prédios novos ou que passam por reforma muito grande.” Exemplo é o Museu Paulista, no bairro do Ipiranga, na Capital, cuja construção data do século XIX.
Como afirma o engenheiro civil responsável pela obra de restauro e ampliação, Frederico Martinelli, a edificação não incorporou a infraestrutura necessária de atendimento e acolhimento ao público ao ser transformada em museu. Por exemplo, não havia guarda-volumes, banheiro, auditório – que à conclusão terá capacidade de 200 lugares.
Pertencente à USP, o Museu Paulista foi fechado em 2013 em função problemas no telhado, no forro, de infiltração e umidade. A partir do diagnóstico do que precisava ser feito, há dois anos tiveram início as obras de restauro e atualização do prédio histórico. “Aproveitou-se a oportunidade para fazer algo muito maior, não apenas conservação ou manutenção”, diz Martinelli, que, contudo, garante que não havia risco à estrutura, por exemplo de desabamento, mas sim de incêndio.
Em visita guiada, ele mostrou à reportagem do Jornal do Engenheiro que as obras incluem a recuperação de toda a fachada, do piso, da escada e das 450 portas, restauração do prédio histórico, instalação de sistema de detecção e alarme contra incêndio e de sprinkler para combate, iluminação, vidros especiais que filtram a luz solar e reduzem o calor no interior do edifício, além de sistema moderno de pára-raios, acessibilidade, recuperação dos jardins.
O museu ganhará um novo pavimento que contará com um mirante. “A ampliação é bastante discreta, semienterrada na parte da esplanada”, explica o arquiteto Eduardo Ferroni, responsável por esse projeto e pelo de restauro. A área original tem cerca de 8 mil metros quadrados e praticamente será duplicada, funcionando como uma extensão do Parque da Independência.
A obra teve investimento de R$ 160 milhões, através de parcerias do poder público com a iniciativa privada. Envolve o trabalho de equipe multidisciplinar que soma 12 engenheiros, além de 400 funcionários. Será concluída em fevereiro de 2022.
Como informa Rosária Ono, as pesquisas para a preservação do patrimônio histórico, incluindo o desenvolvimento de tinta especial para a recuperação da fachada, envolveram diversos laboratórios da USP e especialistas. Martinelli informa que plano de manutenção será ainda apresentado, conforme as especificações técnicas, como em relação ao sistema de incêndio.
Baixo investimento
Cotta, que atuou no Corpo de Bombeiros por 30 anos e é tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, lembra que a preservação e a proteção da grande maioria dos museus estão nas mãos do Estado.
Segundo a Agência Brasil, o País conta atualmente mais de 3,8 mil desses equipamentos culturais, sendo cerca de 1.600 dedicados à história e outros 500 a artes. A informação foi dada ao portal pelo presidente do Ibram, Pedro Mastrobuono.
mãos do Estado.
Segundo a Agência Brasil, o País conta atualmente mais de 3,8 mil desses equipamentos culturais, sendo cerca de 1.600 dedicados à história e outros 500 a artes. A informação foi dada ao portal pelo presidente do Ibram, Pedro Mastrobuono.
“A fragilização é enorme, não se contrata nas licitações pela capacitação técnica, mas pelo preço”, lamenta Cotta. A busca, como continua, é sempre por gastar o mínimo possível em engenharia de manutenção.
Atienza frisa: “O poder público sempre alega que faltam recursos. Mas se pegar fogo, além de ter que gastar mais para a reconstrução, as perdas são inestimáveis. Preservar o patrimônio é mais barato e é dever do Estado. Não se deve esperar entrar em colapso para contratar emergencialmente. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) já tem que prever o valor para manutenção, diferentemente do que ocorre hoje. Isso é imprescindível”, enfatiza o diretor do SEESP, que assegura: “Temos muitos profissionais qualificados, falta contratá-los. A maioria dos acidentes é por falta de engenharia.”
Não só a manutenção não é prevista na LDO como agora o País sequer conta com um Ministério da Cultura, cujas atribuições passaram à Pasta de Turismo, denotando desmonte do setor que vem sendo denunciado por especialistas.
Os recursos para a cultura têm se reduzido ano a ano. Segundo o Portal da Transparência, em 2017, destinavam-se à área R$ 2,18 bilhões; em 2021, são R$ 1,73 bilhão. Há quatro anos, foram executados, do total, R$ 1,02 bilhão, agora apenas pouco mais de R$ 380 milhões. Desse montante, estavam reservados ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) apenas R$ 345,57 milhões, dos quais foram executados R$ 183,96 milhões.
O órgão é responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileiro, que inclui não só museus, mas também igrejas, teatros, cidades históricas e monumentos, 26 mil sítios arqueológicos, bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e muito mais. Até o fechamento desta edição, a reportagem do Jornal do Engenheiro não obteve retorno à solicitação de entrevista feita ao Iphan.
Crime anunciado
O incêndio no galpão da Cinemateca é exemplar do desmonte a que está submetida a cultura. Após a tragédia em 29 de julho último, ex-funcionários divulgaram um manifesto intitulado “Crime anunciado”, em que não deixam dúvidas: “Há mais de um ano denunciamos publicamente a possibilidade de incêndio nas dependências da Cinemateca pela ausência de quaisquer trabalhadores de documentação, preservação e difusão.”
Eles complementam: “Houve o alerta sobre a chance de o sinistro ocorrer nos acervos de nitrato da Vila Clementino, pois trata-se de material inflamável que pode entrar em autocombustão sem revisão periódica. Não foi o caso deste, o quinto incêndio na instituição. No entanto, as causas são as mesmas. Seguramente, muitas perdas poderiam ter sido evitadas se os trabalhadores estivessem contratados e participando do dia a dia da instituição.” Lembram que a Cinemateca foi abandonada e todo seu corpo técnico demitido, sem sequer receber salários não pagos e rescisão.
O manifesto acrescenta: “A situação se torna mais crítica se pensarmos que essa ausência de equipe técnica especializada por um ano possivelmente teve consequências irreversíveis para o estado de conservação dos materiais. Certos danos são silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio e igualmente irrecuperáveis. Trata-se do tempo de vida dos diversos materiais, diminuindo drasticamente, e da perigosa deterioração dos filmes de nitrato e de acetato. Apenas com o retorno da equipe especializada será possível avaliar as extensões das perdas e danos para que então as atividades de conservação sejam retomadas.”
Carlos Augusto Calil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), informou à reportagem do Jornal do Engenheiro, por e-mail, que a organização está em negociações com o governo federal para uma ajuda de emergência à Cinemateca que possibilitaria a contratação por três meses de alguns técnicos que teriam acesso à instituição para o monitoramento do acervo.
Enquanto isso, como informou, o local continua fechado ao acesso público e “desconhecemos o estado atual do acervo e os prejuízos provocados pelo incêndio”.
A situação é dramática e não se restringe à Cinemateca. Tupinambá observa que “oito dias após o incêndio no Museu Nacional, o Ministério Público pediu à Justiça Federal a transferência/interdição dos museus da República, Histórico Nacional, Villa Lobos, Chácara do Céu e do Arpoador, todos eles sob a tutela do governo federal, situados no Rio de Janeiro e sem AVCB”.
Diante disso, como ressalta Berto, “incêndios em edificações culturais não devem ser vistos como fatalidades ou como obra de um acaso perverso. Em todas as situações, manifestaram-se a partir de deficiências de ordem preventiva e se desenvolveram livremente contando com deficiências das disposições de proteção contra incêndio”. Ele destaca que o Brasil conta com tecnologia para apoiar as medidas necessárias de modo a evitar a destruição do patrimônio cultural brasileiro.
Propostas
Com adesão do SEESP, a Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) apresenta em seu projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento” a proposta de instituição de órgãos de Engenharia de Manutenção em todas as esferas de governo (federal, estaduais e municipais), com equipe qualificada e dotação orçamentária próprias para a conservação e inspeção das distintas obras de arte. Sua instituição poderia também abranger pessoal especializado para cuidar do patrimônio cultural brasileiro.
Rosaria Ono enxerga com bons olhos a sugestão. Na sua concepção, é uma necessidade ter corpo técnico multidisciplinar capacitado para atuar de forma permanente.
Nessa direção, Tupinambá sugere que o SEESP pode contribuir ao planejamento e orientação das equipes. Marcelo Lima também defende a proposta. A educação continuada à qualificação e atualização técnica para atuação no segmento é ainda apontada como essencial pelos especialistas.
Fonte: SEESP