Considerada essencial para reduzir a emissão de poluentes nas cidades e grande aliada da transição energética para fontes limpas, a ampliação do uso dos veículos elétricos no transporte público e individual propicia revolução tecnológica e traz oportunidades relevantes à indústria e à engenharia. O risco para o Brasil é ficar fora da festa e assistir à decadência do seu atual parque, que colocou nas ruas apenas 2,3% de versões eletrificadas, as quais incluem os modelos híbridos.
O alerta é do presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), Adalberto Maluf, que cobra ações do Estado que incentivem, especialmente com medidas fiscais e de financiamento à ciência, tecnologia e inovação, a nacionalização da fabricação desses produtos cujo mercado deve crescer fortemente nos próximos anos. “Não faz sentido que o Brasil esteja desconectado da realidade global. O mundo saiu de 11% para 23% e, neste ano, vai passar de 40%. Estamos começando a ver números indicando que talvez em 2025 o mundo esteja vendendo mais veículos elétricos que a combustão”, afirma.
Nesse caminho que se anuncia sem volta rumo à eletrificação, a batalha essencial é que o esforço ambiental também represente avanço tecnoindustrial internamente, o que significa conseguir qualificar as montadoras instaladas aqui para que atendam a demanda interna e da região, o que já é alvo da disputa da guerra global no setor, que tem a China como feroz e competente competidora.
Diretor de marketing, sustentabilidade e novos negócios da gigante de energia limpa e mobilidade elétrica Build Your Dream (BYD), Maluf testemunha o quadro atual: “Só a BYD vendeu 1.500 ônibus para Bogotá no ano passado, veículos que historicamente eram fornecidos por empresas brasileiras. A gente exportou aqui de Campinas o primeiro para Medelín e Bogotá para fazer os testes, mas quando veio a licitação, comprou da China porque a nossa fábrica não teve ainda a escala necessária para nacionalizar os componentes e ser competitiva. Então, não liderar o processo de renovação de frota deixa as fábricas brasileiras em menor competitividade em relação aos vizinhos. Santiago historicamente sempre foi provido de ônibus fabricados no Brasil, no ano passado teve 1.400 ônibus elétricos entrando em operação, a grande maioria importados da China.”
No centro desse embate atualmente estão os 2.700 ônibus que deverão ser adquiridos na cidade de São Paulo até 2024 para colocar em pé o plano de substituição da frota local. Objeto de denúncia e debate durante reunião realizada em 31 de março último do Comitê Gestor do Programa de Acompanhamento da Substituição de Frotas por Alternativas Mais Limpas (Comfrota), está em curso lobby pela isenção fiscal dos ônibus elétricos importados. “Zerar o imposto só vai beneficiar um importador, um lobista. Depois de dois anos esses ônibus vão quebrar. Inclusive, os primeiros da China que vieram fazer os testes aqui em São Paulo foram reprovados pela SPTrans”, dispara Maluf.
A intenção de beneficiar o produto estrangeiro em detrimento do nacional, que teve apoio registrado em ofício da administração municipal paulistana enviado à Câmara de Comércio Exterior (Camex) do Ministério da Economia, recebeu repúdio formal de várias instituições, inclusive do SEESP. A entidade se manifestou durante a reunião do Comfrota e em carta endereçada ao secretário executivo de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo, Antonio Fernando Pinheiro Pedro.
Resolver esse imbróglio é fundamental para que a capital paulista cumpra as metas estabelecidas em prol do clima. A primeira, em dez anos a partir da vigência da lei sancionada em 2018, designa a redução de 50% das emissões totais de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil, 90% de material particulado (MP) e 80% de óxido de nitrogênio (NOx), com base nos dados de toda a frota em 2016. Já a segunda determina em 20 anos (até 2038) a redução de 100% das emissões totais de CO2 e de 95% de MP e NOx.
Bacharel em Relações Internacionais e mestre em Economia Política Internacional (MSc) pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), Maluf se tornou referência no debate ambiental e foi agraciado pelo SEESP em 2021 com o Prêmio Personalidade da Tecnologia na categoria “Transporte”. Confira a entrevista concedida ao Jornal do Engenheiro a seguir e no vídeo ao final.
Qual o panorama da eletromobilidade hoje e por que é importante fazer a transição energética no transporte?
A eletromobilidade avançou muito no mundo nesses últimos anos, puxada em parte por uma agenda ambientalista dos governos. Hoje o mundo está envolvido em reduzir as emissões de poluentes, de gases de efeito estufa, [mas] relatórios recentes da ONU [Organização das Nações Unidas] mostram que estamos aquém [do necessário]. Então foram aprovadas políticas ambientais muito consistentes na Europa, nos Estados Unidos e na China; e as empresas como um todo, puxadas pela agenda ESG [sigla em inglês para Environmental, Social and Governance – Ambiental, Social e Governança], fizeram com que soluções de baixo carbono tenham crescido muito. No ano passado, foram aprovados o Pacote Verde, da União Europeia, o Plano de Infraestrutura, nos EUA, e o 14º Plano de Desenvolvimento, na China. Todos eles colocam a eletromobilidade, a economia de baixo carbono, as fontes de energia renovável no centro dessa nova revolução. Então não é mais só um tema ambiental, se transformou em política industrial e para o desenvolvimento da economia do futuro.
Como está a situação do Brasil nesse contexto?
Nós temos algumas notícias positivas. A venda de veículos eletrificados, que incluem os híbridos e os elétricos, teve um salto de 115% no primeiro trimestre de 2022. Tinha saído de 1%, foi para 1,7% no ano passado e agora estamos em 2,3%. Pelo menos é um aumento consistente. Na maior parte são híbridos flex produzidos no Brasil, o que demonstra que o nosso parque produtivo pode fazer a transição com facilidade dos flex, que são uma tecnologia intermediária da qual o Brasil tem muito a se beneficiar. O etanol é um biocombustível renovável que gera muito emprego e renda, desenvolve uma indústria muito importante de transformação associada ao agro. Mas quando vemos as políticas em nível mundial, o Brasil está ainda muito longe. A Alemanha saiu de 3%, foi para 16% e 26% de veículos elétricos. A Europa como um todo vendeu 22%. Sem falar em Noruega, Holanda, Suécia, que estão vendendo mais de 80%. A China está com 28% de veículos elétricos. O maior mercado automotivo do mundo fez uma transição em três anos que nenhuma previsão chegou perto de imaginar. A China vendeu mais de 3 milhões de veículos elétricos puros no ano passado.
Apesar dos avanços, a situação está longe de ser ideal internamente então?
Me preocupa, como brasileiro e presidente da ABVE, o fato de o mundo ter uma capacidade de produção de mais de 100 milhões de veículos, mas vendas de no máximo de 70 milhões. Um terço das fábricas vai fechar nos próximos anos. No Brasil, a venda de veículos a combustão caiu 25%, enquanto de elétricos subiu. Em nível mundial, aconteceu a mesma coisa. A gente precisa rapidamente fazer essa transição, fazer estímulos e incentivos, para que o Brasil possa se inserir nessas cadeias globais. As fábricas que existem hoje podem fazer a transição para híbrido flex, [o que] já é muito importante, amplia o uso do etanol que hoje é só de 19%. Mas a fábrica de híbrido flex não consegue se transformar em elétrico. Não vejo como o mundo virar a chave na velocidade com que está virando em prol do elétrico e o Brasil estar desconectado dessa realidade. A gente precisa entender que, em momentos de transição tecnológica, o governo tem que liderar o processo. O Brasil é o único país grande do mundo que tem parque produtivo e não tem uma política nacional de eletromobilidade. A gente está falando de mudança do perfil de emprego; os engenheiros do futuro vão ter que aprender novos tipos de habilidades tecnológicas, cognitivas, interpessoais que hoje a gente não está ensinando nas nossas escolas de engenharia. Mas como vão fazer essa transição se não tiver mercado, fábricas, novas tecnologias? Quando a gente fala de eletromobilidade, é muito além do veículo. É a infraestrutura de recarga, a geração distribuída nas residências, o software, a inteligência. A eletromobilidade é uma das grandes tendências no processo de digitalização e descentralização do setor elétrico. O carro elétrico vai carregar à noite quando tem eólica gerando e ninguém consome. É um ativo novo para o setor elétrico, mais receita, dividindo os custos do sistema. Ao mesmo tempo, a gente vem assistindo uma escalada dos preços dos combustíveis fósseis que parece que no curto prazo não vai ter um refresco. Ou a gente faz a transição para a indústria do futuro ou vai continuar esse processo, foram dez fábricas que fecharam no Brasil nos últimos sete ou oito anos. Até quando a gente vai ver fábricas centenárias, que fabricavam veículos entre os mais vendidos do Brasil, fechando e fingir que está tudo bem? Não está tudo bem. Quando a gente vê engenheiros demitidos de montadoras que não conseguem se inserir novamente na indústria de transformação e acabam indo para a área de serviços, abrem uma pizzaria, um negócio de hamburguer gourmet, acho que todos entendem que a produtividade marginal do trabalho do Brasil cai. Hoje a produtividade é o grande desafio da economia brasileira, uma das poucas entre as de alto ou médio desenvolvimento que tem a produtividade estagnada. E talvez por isso a gente viva hoje o maior processo de desindustrialização da nossa vida. Quando eu nasci, em 1980, a indústria de transformação [representava] 35% do PIB; hoje é 9%. No ano passado, a parcela do nosso PIB associada a produtos primários ultrapassou a indústria. É importante, o agronegócio puxa a economia brasileira, mas a gente não pode se contentar só com isso, voltar a ser Brasil-Colônia. A gente ouve às vezes de ministros que “está tudo bem, o agro está indo bem, não precisa de política industrial”. Se estivesse tudo bem, não teria fábricas fechando. [É urgente que se faça] a renovação do nosso parque produtivo para se inserir nas cadeias produtivas globais, e para isso precisa do governo federal coordenando, articulando, financiando a ciência e tecnologia. Alguns [países] dobraram sua capacidade de gerar inovação, a gente reduziu pela metade. Temos o menor orçamento em C&T dos últimos 15 anos.
Quais seriam as medidas essenciais para um plano nacional de eletromobilidade?
Um plano nacional é uma política extremamente integrada, estamos falando de inovação, pesquisa, uso do poder de compra do governo, mas inicialmente é preciso conversar sobre isonomia fiscal. Hoje um carro elétrico paga mais imposto que um a combustão no Brasil. Isso é um absurdo. Lá atrás, na aprovação do “Rota 2030” (plano federal voltado à indústria automotiva), aos 45 minutos do segundo tempo, o presidente Michel Temer cedeu a alguns interesses e optou por retirar todos os incentivos à indústria do futuro. Os reflexos estão aí: mesmo em estados de vanguarda, como São Paulo, que aprovou o “Pró Veículo Verde”, mas não resolveu o problema do ICMS para caminhões: são 18% para elétricos e 12% para os a diesel. Nós tentamos sensibilizar a Secretaria da Fazenda, mas eles disseram: “não precisa mexer nisso, é muito complexo; a gente tem fábrica aqui de caminhão a diesel, pode gerar problema”. Mas como? Se essa fábrica não fizer a transição para o híbrido e depois para o elétrico, não vai continuar. Ou é possível que a gente feche as nossas fronteiras? Projeções que eu considero tímidas já dizem que, em 2035, 70% ou 80% dos veículos serão elétricos; outras, mais atuais, que em 2030, na grande maioria, os veículos serão elétricos puros. Só que a projeção do governo brasileiro diz que, em 2050, vamos ter de 10% a 15% de elétricos. Como? Não faz sentido que o Brasil esteja desconectado da realidade global. O mundo saiu de 11% para 23% e, neste ano, vai passar de 40%. Estamos começando a ver números [indicando] que talvez em 2025 o mundo esteja vendendo mais veículos elétricos que a combustão. As vendas que aumentaram no último ano são fruto de ações muito específicas de prefeituras que criaram estímulos, a de São Paulo é um bom exemplo, mas a gente precisa de uma ação muito mais integrada, estamos falando de uma guerra tecnológica.
E como disputar essa guerra?
A China, no 14º Plano, diz que buscará independência em ciência básica, aplicada, tecnologia e inovação. O gasto nos próximos anos para incentivar essas indústrias vai fazer com que as empresas chinesas fiquem muito competitivas. Hoje, se se exporta um ônibus elétrico da China, o fabricante recebe 13% dos impostos de volta, além dos incentivos. Já no Brasil, dá-se margem a pleitos que parecem absurdos: importadores que, mesmo com fabricação local de produtos de melhor qualidade, conseguem zerar o imposto de importação e ter acesso a financiamento do banco de desenvolvimento com taxa de juros menor que [a conseguida no] BNDES. Você tem o Banco do Nordeste financiando importados mais barato do que o BNDES Finame financia o produto que cumpriu o conteúdo local, fez pesquisa, inovação e desenvolvimento. Só faz sentido para uma elite financeira que acha que pode ficar ganhando dinheiro às custas da sociedade. “Ah, vai fechar duas fábricas ali no interior de São Paulo, 10 mil empregos, tudo bem. Eu vou ganhar mais R$ 10 milhões com esse negócio, estou satisfeito.” A gente não pode continuar com essa síndrome de vira-lata de achar que o Brasil não pode competir com os países desenvolvidos. Há pessoas do Ministério da Economia que repetem: “Não, eu estudei esse assunto, é só baixar o imposto de importação que a indústria local fica mais competitiva, produtiva e consegue exportar. Precisa pôr o industrial na cova dos leões para ele aprender a lutar e sair mais forte.” Isso não tem amparo na literatura acadêmica! Há casinhos específicos no Chile, na Holanda, mas não leu o resto da literatura que mostra que a grande maioria dos países que abriu desenfreadamente o seu comércio exterior, zerando imposto ao mesmo tempo que não resolveu os impostos dos insumos, teve a sua indústria quebrando. Não podemos comprar esse argumento simplista que a gente ouve no Ministério da Economia – eu tive reunião lá, ninguém me contou.
Enquanto não há medidas efetivas, o Brasil vai ficando fora do jogo?
Só a BYD vendeu 1.500 ônibus para Bogotá no ano passado, veículos que historicamente eram vendidos por empresas brasileiras. A gente exportou aqui de Campinas o primeiro para Medelín e Bogotá para fazer os testes, mas quando veio a licitação, comprou da China porque a nossa fábrica não teve ainda a escala necessária para nacionalizar os componentes e ser competitiva. Santiago historicamente sempre foi provido de ônibus fabricados no Brasil, no ano passado teve 1.400 ônibus elétricos entrando em operação, a grande maioria importados da China. Então, não liderar o processo de renovação de frota deixa as fábricas brasileiras em menor competitividade em relação aos vizinhos.
Corre-se o risco de prevalecer o interesse dos importadores em detrimento da indústria nacional?
É um contexto muito difícil e eu agradeço o apoio do SEESP e do Instituto de Engenharia na nossa última reunião do Comfrota [na crítica] ao pleito que foi feito para zerar o imposto de importação para ônibus elétricos com esse falso argumento de que não tem fabricação nacional. Estamos falando de fábricas globais, como a BYD, de uma nacional como a Eletra, mas também de uma Mercedes, Volvo, Scania. Como assim? A Volvo Brasil não consegue competir com a Volvo China? Eu não acredito nisso. Então, ou a gente entende esse contexto e faz alguma coisa para colocar o Brasil nessas cadeias produtivas globais ou simplesmente vamos ser engolidos e todos os engenheiros que trabalham na indústria vão ter que pensar em outra coisa para fazer. Zerar o imposto só vai beneficiar um importador, um lobista. Vai ganhar a licitação pública que é por menor preço, e aí a sociedade vai ter que pagar. Os 10% [a menos no preço dos veículos adquiridos] reduzem menos de 1% no custo total da operação, e depois de dois anos esses ônibus vão quebrar. Inclusive, os primeiros ônibus importados da China que vieram fazer os testes aqui em São Paulo foram reprovados pela SPTrans, que mostrou que aquele monobloco feito de alumínio, no contexto brasileiro de piso acidentado e muita gente dentro do ônibus, com o efeito torção, começa a ter rachadura na porta e na janela depois de quatro, cinco anos. Aqui as carrocerias são reforçadas, feitas de alumínio com aço. São Paulo tem que comprar 2.700 ônibus até 2024. Vamos dizer que eles consigam zerar o imposto de importação. Consegue trazer um lote da China que já está pronto, são ônibus velhos que estão lá. Espero que isso não seja aprovado. Alguns prefeitos e secretários haviam assinado cartas apoiando [a isenção fiscal] e depois retiraram, disseram que foram enganados. A gente torce para que mais essa iniciativa não saia do papel para que possamos cumprir nossos planos de nacionalização. Aí vamos dando competitividade à indústria e menos influência ao dólar. É um momento difícil, a gente tem 100 mil empregos diretos na indústria automotiva, São Paulo tem quase metade de todas as fábricas de veículos. Espero que a gente consiga afastar essa proposta que seria catastrófica.
Fonte: FNE