O corte reto e metalizado traçado pela ferrovia no horizonte destaca a Transnordestina em meio à seca paisagem sertaneja, tão familiar ao agricultor Francisco Emiliano, de 58 anos, que viu a obra ser lançada em 2006 e testemunha diariamente o silêncio da linha inacabada, onde já não há mais operários trabalhando e nem passa trem algum.
Ao longo dos dez anos de sua atrasada obra, que já consumiu mais de R$ 6 bilhões, a ferrovia Transnordestina passou de símbolo da promessa de um Nordeste e de um Brasil que não parariam de crescer para um catálogo de retratos de abandono, tanto onde a linha está pronta, mas sem operar comercialmente, como nos canteiros de obra deixados para trás quando o dinheiro parou de entrar.
O futuro da ferrovia, que era um dos principais projetos de infraestrutura do país, com mais de 1.700 quilômetros de traçado, segue incerto. As dúvidas persistem mesmo depois da aguardada medida provisória das concessões, publicada no mês passado, que cria mecanismos para devolução negociada de contratos à União, para serem relicitados, e da promessa de mais dinheiro do governo federal anunciada na última terça-feira (13).
O projeto ainda precisa de bilhões de reais para ser concluído. Além disso, a obra está sob a mira do TCU (Tribunal de Contas da União) pela legalidade do contrato que deu à concessionária controlada pela CSN o direito de tocar e gerenciar o projeto, por questões licitatórias e eventual disparidade de valores.
O que se vê atualmente no percurso por onde passariam vagões carregados, principalmente de minérios e grãos, é um legado de desolação e desemprego no sertão castigado por uma estiagem que já dura cinco anos.
“Até agora, a obra parou aqui. Depois continua só a estrada carroçal (de terra). Se estivesse pronta ia ser bom demais. Ia chegar combustível mais barato, emprego para o povo. Está tudo parado. Tem muito desempregado por aí”, conta Emiliano.
O agricultor, pai de sete filhos, mora perto da cidade de Missão Velha (CE), de 34 mil habitantes, e trabalha cuidando de cerca de 80 cabeças de gado em uma propriedade às margens dos trilhos da Transnordestina.
Emiliano vigia o gado em um local a apenas algumas dezenas de metros do chamado Marco Zero, onde as obras foram lançadas dez anos atrás pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
E é ali mesmo, pouco depois do Marco Zero, que o trecho pronto da ferrovia que vem de Pernambuco termina abruptamente. Dormentes, trilhos e brita vão sendo deixados para trás até que a obra passa a ser apenas uma estrada de terra batida, usada hoje para pastagem de animais e como atalho para motos e carros que circulam na região.
A reportagem da Reuters percorreu cerca de 300 quilômetros do projeto, quase metade da extensão já concluída, bem como locais onde a obra estagnou, no Ceará e em Pernambuco, ouvindo relatos de pessoas afetadas direta ou indiretamente pelo projeto que voltou à pauta em Brasília, no momento em que o governo federal tenta encontrar uma solução para esta e outras concessões de logística que enfrentam graves problemas para seguir adiante.
O Ministério da Integração Nacional acenou com injeção de mais R$ 430 milhões para a retomada das obras da ferrovia. Desse valor, segundo anunciado na terça-feira, cerca de R$ 153 milhões serão liberados pelo Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor) “e permitirão a retomada das obras”. O ministério não informou, no entanto, prazos para isso até o fechamento desta reportagem.
Do total anunciado, outros R$ 150 milhões “estão condicionados à comprovação da execução dos serviços ao longo de 2017”. O restante será desembolsado pela estatal Valec, sócia minoritária do projeto, no ano que vem. A pasta não deu nenhum detalhe sobre como a verba será aplicada.
A liberação desses recursos teria ocorrido depois que a TLSA se comprometeu a apresentar em 50 dias “um plano de trabalho com informações sobre a aplicação dos recursos e as metas para dar mais impulso à execução dos serviços em 2017”, afirmou o ministério.
O projeto da Transnordestina, no entanto, ainda precisa de pelo menos mais R$ 5 bilhões. Fontes do governo avaliam que pode ser difícil encontrar quem esteja ainda disposto a apostar na ferrovia, levando em conta que governo de Michel Temer está menos disposto a ser sócio de grandes empreendimentos.
Apesar da repactuação financeira da Transnordestina com a TLSA estar sobre a mesa, uma fonte do governo que participa diretamente das discussões e outras três autoridades do governo federal dizem que o mais provável é que ocorra a chamada devolução negociada, ou “amigável”, da concessão. A TLSA é controlada pela CSN.
Se essa for de fato a saída, a União retomaria a concessão da ferrovia para tentar oferecê-la posteriormente ao mercado em leilão, seguindo as regras da MP das concessões.
Uma possibilidade para tentar viabilizar o interesse de investidores seria reduzir o traçado originalmente previsto, mas segundo a fonte que participa diretamente das discussões há dentro do governo dúvidas sobre se existe carga suficiente nas regiões atendidas pela ferrovia para atrair esse investimento.
“NÃO TEM LÓGICA”
As obras da ferrovia, que a esta altura deveriam estar em grande parte prontas, já custaram cerca de R$ 6,27 bilhões, segundo a estatal Valec, sócia minoritária do projeto. Porém, o trabalho está longe de terminar, já que apenas 52% das obras previstas foram concluídas.
O objetivo público da ferrovia era ter uma capacidade para transportar 30 milhões de toneladas de carga por ano, principalmente minérios e grãos, segundo dados da TLSA.
Para se ter uma ideia do que isso significa, em 2015, segundo dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), a malha paulista da Rumo (ex-ALL), que liga o Centro-Oeste ao principal porto do país, Santos, transportou cerca de 4,7 milhões de toneladas de carga.
Para alguns especialistas, porém, o potencial de carga para a nova Transnordestina pode ser bem menor do que sua capacidade. “Se chegasse a 5 ou 6 milhões de toneladas transportadas por ano seria muito”, disse o diretor-executivo do Movimento Pró-Logística, Edeon Vaz Ferreira. O grupo reúne entidades de diversos setores, como agropecuário e industrial.
Atualmente, estão concluídos cerca de 600 quilômetros de trilhos, de um traçado de 1.753 quilômetros, segundo a TLSA.
A diferença entre os quilômetros e o percentual de conclusão leva em conta a execução de pontes, viadutos e trabalhos preparatórios do solo para o assentamento dos trilhos.
O atual contrato da Transnordestina, no entanto, prevê a entrega da ferrovia em janeiro de 2017.
Pelo projeto atual, a ferrovia partiria de Eliseu Martins, no interior do Piauí, em direção a Salgueiro, em Pernambuco, de onde se dividiria em dois grandes braços em direção aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE).
Questionada sobre o futuro da obra, a TLSA afirmou que a liberação dos R$ 430 milhões permitirá a “retomada imediata das obras de forma sustentável ao longo de 2017”, e a criação de cerca de 5.000 empregos. Porém, a empresa acrescentou que segue negociando com o governo para “consolidar o plano definitivo que possa garantir a conclusão do projeto”.
Com a repactuação financeira e a retomada do ritmo na obra, a empresa afirma que conseguiria concluir o trecho entre Eliseu Martins e Pecém em 30 meses “e a ligação até o porto de Suape em mais 14 meses”. A CSN encerrou setembro com dívida líquida de R$ 25,8 bilhões e tem vendido ativos para reduzir o endividamento.
Uma das críticas de técnicos ouvidos pela reportagem, e que pode ajudar a explicar por que os trechos prontos da ferrovia não estão em operação, diz respeito ao fato das obras da Transnordestina terem começado pelo interior e não pelos portos. Sem conexão com os terminais portuários, os trilhos prontos não têm para onde levar cargas.
“Isso é mais do que atípico, não tem lógica. Se tem um porto, você a 50 quilômetros dele já tem carga e pode começar a operar. Esse tipo de procedimento demonstra outro problema, que é a falta de um planejamento mais consistente”, disse o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-diretor da ANTT Luiz Afonso Senna.
“Você tem formas de construir e agregar cada trecho para já começar a deixá-lo operacional”, acrescentou.
A TLSA afirma que estuda iniciar uma possível nova frente de trabalhos a partir de Pecém, em direção a Missão Velha. “O modelo de construção idealizado foi desenvolvido para possibilitar o menor deslocamento de matéria-prima (dormentes e brita) por meio do lançamento de três frentes simultâneas a partir de Salgueiro, vértice dos três segmentos, possibilitando um menor custo do projeto”, disse a empresa.
Segundo a professora do mestrado de Geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Tânia Bacelar, a Transnordestina precisaria avançar mais rumo ao oeste para se encontrar com a ferrovia Norte-Sul e obter mais carga.
“A Norte-Sul será a espinha dorsal do sistema nacional. A Transnordestina está no meio do caminho ainda”, disse a economista.
Em meio a críticas e questionamentos, o ex-diretor da ANTT avalia que muito dinheiro já foi investido na Transnordestina e terminá-la é essencial. “Não pode haver uma obra daquele porte parada, com o que já foi investido, com a relevância econômica que tem para a região”, disse.
“Temos no Brasil os chamados elefantes brancos, esse ainda não é um elefante adulto, mas precisamos achar uma solução por meio de um modelo concessão que pare em pé”, afirmou ele.
A estimativa total de investimentos necessários subiu de R$ 7,5 bilhões, previstos em 2012, para os atuais R$ 11,2 bilhões, orçamento em fase de validação pela ANTT, segundo a concessionária.
NA MIRA DO TCU
O projeto da Transnordestina está sob a lupa do TCU há meses, e seus técnicos estão examinando pelo menos três aspectos do empreendimento. Um deles diz respeito à legalidade do próprio contrato que deu à concessionária controlada pela CSN o direito de tocar e gerenciar o projeto.
O Ministério Público de Contas do TCU afirma que não houve licitação para a concessão do projeto à TLSA e ainda desconfia de eventual disparidade entre os valores já investidos e extensão já concluída da obra.
“A construção de 1.753 quilômetros de ferrovia e a exploração desse novo objeto no contrato de concessão da Malha Nordeste deu-se sem prévia licitação, com violação aos comandos contidos no artigo 175 da Constituição Federal e de diversos comandos da Lei 8.987/1995”, como consta do processo que tramita no TCU sobre o caso.
O ministro do TCU Augusto Sherman afirmou em julho, no processo aberto no tribunal sobre a Transnordestina, que um dos financiadores da obra, o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE), teria observado disparidade entre a execução física e a financeira.
A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que administra o fundo, confirmou à Reuters que, “na última liberação de recursos do FDNE para o projeto da Ferrovia Transnordestina, o Banco do Nordeste (agente operador do FDNE) verificou haver defasagem de comprovações das execuções física, financeira e contábil do projeto”.
E por isso, em 2014, a Sudene notificou a concessionária condicionando a aprovação de novo pedido de desembolso à comprovação da conformidade das execuções “em patamares compatíveis com os recursos efetivamente liberados pelo FDNE”.
Questionada sobre isso, a TLSA afirmou que, considerando o orçamento mais recente, de R$ 11,2 bilhões para o total da obra, já foram gastos o equivalente a 56% disso, percentual próximo aos 52% atribuídos à execução física da construção. “Desta forma, não há descompasso entre os valores aplicados na obra e a sua correspondente execução física, fato já reconhecido pelo TCU quando da derrubada da liminar que suspendia novos aportes no projeto”, disse a TLSA, em resposta encaminhada à Reuters.
A comprovação da execução física da ferrovia também é uma prioridade do TCU, que deve fazer no ano que vem uma análise da obra com o uso de geotecnologia, informaram técnicos do tribunal.
A TLSA atribui ao atraso no repasse de recursos públicos as dificuldades com a obra.
TRILHOS SECOS
Enquanto o imbróglio em torno do financiamento do restante da ferrovia se desenrola, a população das regiões no entorno das obras amarga a falta de trabalho. Nela se inclui Daniel Alves, de 29 anos, morador de Missão Velha (CE) e desempregado há quase seis meses. Ele trabalhava nas obras da ferrovia na região desde praticamente o início.
“Trabalhei na obra da ferrovia desde 2007. Mas quando parou, fiquei sem trabalho. Estou parado, esperando, tem promessa da obra voltar. Dizem que para voltar estão esperando as chuvas, porque sem água não funciona a obra”, contou.
Segundo a TLSA, em outubro havia 829 funcionários mobilizados na obra da ferrovia. Em 2010, no pico dos trabalhos, eram cerca de 11 mil.
Outro desempregado em Missão Velha é Joel Bertoso, de 21 anos, amigo de Alves e colega dele antes da interrupção das obras. “Tinha gente demais aqui na região trabalhando na obra. Muitos foram para outros Estados plantar, o emprego que tinha aqui era esse”, disse Bertoso.
A agricultura é alternativa de trabalho imediata para todos que vivem no semi-árido, mas como o Nordeste vem de uma sequência de cinco anos de seca -no Ceará, a pior desde 1910, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)- e tampouco foram concluídas todas as obras da transposição do São Francisco, falta água e é difícil sobreviver da terra.
ENCRUZILHADA DO NORDESTE
Distante quase 100 quilômetros de Missão Velha, a cidade de Salgueiro, um pólo regional em Pernambuco de quase 60 mil habitantes, encravado no cruzamento das rodovias BR-116 e BR-232, também espera pela Transnordestina e pela transposição do São Francisco.
“Tivemos um grupo de hotéis de Recife que chegou a adquirir terreno aqui no município, mas me disseram que só vão construir quando a ferrovia estiver pronta”, disse o prefeito de Salgueiro, Marcones Libório de Sá (PSB).
Segundo o prefeito, havia ainda estudos da Gerdau para investir na cidade, bem como conversas para atrair uma central de distribuição de combustíveis da Petrobras. “Mas sem a ferrovia essas coisas não têm sentido.”
A própria fábrica de dormentes e brita instalada em Salgueiro para abastecer a Transnordestina parou de produzir no final do ano passado, aumentando a conta dos desempregados do projeto e da região.
Segundo dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério do Trabalho, após um apogeu de mais de 5.700 vagas líquidas criadas entre 2009 e 2010, o município de Salgueiro acumulou uma perda também líquida de cerca de 8.200 postos de trabalho formais entre 2011 e setembro deste ano.
A falta de conclusão da obra jogou um balde de água fria em quem investiu em Salgueiro contando com o aquecimento da economia local.
“A situação é muito difícil. O pessoal que trabalhava nessas obras hoje está desempregado e não tem outra alternativa. A cidade praticamente parou e não há outra alternativa de investimento, haveria se a ferrovia estivesse funcionando”, disse Francisco Aílton, de 54 anos, gerente de um hotel em Salgueiro, que viu o movimento cair cerca de 60% de 2014 para cá.
Enquanto isso, a pouco mais de 10 quilômetros do hotel de Aílton, a família de Raimundo José da Silva convive com um muro de aço formado por mais de 60 vagões da Transnordestina, estacionados nos trilhos que cortam sua propriedade ao meio. Muitos deles estão carregados de brita e dormentes que nunca chegaram ao destino.
“A carga está aqui. Eles levavam quando precisavam, quando estavam trabalhando. Mas parece que agora está parado”, disse Silva, que teve de pedir à TSLA para separar o comboio em duas partes para poder levar o gado para pastar do outro lado de sua propriedade.
Fonte: Folha SP