Para Hélio Zylberstajn, com menos vínculos de emprego, Previdência do futuro vai depender de renda básica universal e poupança individual
Os vínculos de emprego são cada vez mais raros e, no futuro, a aposentadoria como conhecemos vai acabar, afirma o professor da USP e pesquisador da Fipe Hélio Zylberstajn.
Para substituir um sistema hoje dependente de contribuições sobre a folha de salário, ele defende uma aposentadoria de três pernas: renda universal para idosos, Previdência no modelo atual e sistema de capitalização (no qual quem ganha acima de um teto tem uma conta individual).
A proposta da Fipe, coordenada por Zylberstajn, é apoiada por entidades do mercado de planos de previdência —Fenaprevi, Abrapp, CNseg e ICSS. “É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.”
No modelo sugerido, o setor privado administraria as contas individuais. Para impedir que má gestão pulverize a poupança do trabalhador, planos que não entreguem bom rendimento seriam dissolvidos, e as contas seriam transferidas para os mais rentáveis.
“É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança”, afirma ele.
O economista afirma que o ideal seria votar primeiro a reforma do setor público. “Assim ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem seus privilégios.” Mas também vê riscos na estratégia de fatiamento da reforma.
Para os críticos, uma reforma mais radical da Previdência, estrutural, pode atrasar mais mudanças urgentes. Vale a pena correr esse risco?
A reforma estrutural é para o futuro, não teria por que atrasar. Mas, se atrasar mais três, seis meses e chegar a uma solução definitiva, vale a pena. E, se mudar tudo junto, quem está há pouco tempo no sistema atual já migra para o novo, o que traz ganhos mais imediatos.
Outra crítica é que a capitalização tem mais risco. Exemplos citados são o do Chile e os de Argentina e Hungria, que recuaram.
Nesses países, eles transformaram totalmente o sistema de repartição em capitalização. Nossa proposta dilui os riscos, porque tem três pilares. Renda básica, de risco zero, e sistema de repartição —pequeno e sustentável— repõem a renda de 75% dos trabalhadores. A capitalização tem o risco de mercado, mas também a possibilidade de ganhar valor.
Uma questão importante é o financiamento da transição. Nosso projeto não afeta as contas públicas. A arrecadação do INSS é preservada. A parte de capitalização recebe dinheiro que hoje vai para o Fundo de Garantia [FGTS]. Outras propostas sugerem capitalização só escritural. Uma parte da arrecadação do INSS é remunerada, mas continua no Estado. Nós propomos investir no mercado, e gerar investimento e crescimento.
O fato de ter o apoio de entidades desse mercado não abre um flanco para críticas de que serve aos interesses desses agentes?
Neste país, sempre que há um setor empresarial querendo propor uma política aparece o temor da identificação. As entidades que apoiam o projeto da Fipe concordaram em aparecer como financiadoras. É o contrário do que se critica: é transparência. É um avanço enorme, um setor empresarial que não tem receio de dizer que gostaria que essa reforma fosse feita. É boa para eles? É. Mas é boa para o país.
Seriam poucos tipos de plano, parecidos, e quem oferecer mais rentabilidade a menor custo ganha a competição. Estamos propondo um mercado competitivo, e o Brasil tem escala para criá-lo de forma transparente e regulada.
Como impedir que má gestão acabe com a previdência do trabalhador?
O mercado terá que criar regras. Por exemplo, um rendimento menor que uma faixa em torno da média levaria à dissolução do plano e as contas seriam transferidas para outro plano mais rentável. É a melhor forma de garantir que os recursos vão ser alocados da melhor maneira. Se deixar com o Estado, aí, sim, pode haver problemas de governança.
Tanto a Fipe quanto a equipe de Paulo Tafner propõem uma renda mínima para o idoso, mas na sua proposta o valor é mais baixo, pouco mais da metade do salário mínimo. Não é pouco para quem não conseguir entrar no mercado de trabalho formal?
É um incentivo para que as pessoas procurem entrar no mercado de trabalho. Alguém que ficou 20 anos registrado vai ter a renda mínima mais metade do salário de contribuição. Se ela ganhava o salário mínimo, a aposentadoria será 75% do salário mínimo. Ela não parte do zero, e ao mesmo tempo você está dizendo “esforce-se para conseguir”.
Mas não falamos em salário mínimo, e sim em reais. O salário mínimo desaparece como moeda na Previdência.
Um sistema de Previdência está ligado ao mercado de trabalho formal. Mas caminhamos para um mundo com menos vínculos.
É verdade, todas essas políticas estão sedimentadas no vínculo de emprego, e ele está desaparecendo. Será preciso repensar toda a regulamentação, todo o direito do trabalho.
Daqui a 30 ou 40 anos, a aposentadoria como conhecemos vai desaparecer ou se reduzir muito, porque ninguém vai ter emprego. Mas todo mundo precisará ter poupança. Provavelmente a aposentadoria do futuro vai ser a renda universal e a capitalização, e nossa proposta já encaminha para isso.
A proposta da Fipe menciona um pilar de poupança voluntária, mas estudos mostram que os brasileiros têm pouca propensão à poupança.
Em parte isso acontece por causa do nosso modelo atual, de repartição. Por que vou poupar se o Estado vai cuidar da minha aposentadoria? Para incentivar o investimento, é preciso reduzir a parte de repartição. Nos Estados Unidos, por exemplo, o trabalhador tem um plano fechado, da empresa em que trabalha e faz uma aposentadoria privada. A aposentadoria de Previdência é deste tamanhinho.
É uma concepção diferente de papel do Estado, não é?
As propostas que criam pilar de capitalização vão nesse sentido também, de transferir responsabilidade para o indivíduo. Pelo que vem sendo divulgado, eles vão propôr uma perna de mercado, mas ela não vai ser dominante.
Temer errou na comunicação. Prevaleceu o discurso de que iriam “matar os velhinhos”. Como evitar esse revés?
A estratégia pode ser ainda mais importante que a comunicação. Quando junta tudo, grupos que não querem ter seus privilégios atingidos atacam o projeto dizendo que ele prejudica os pobres. Bagunça tudo.
Defende fatiar a reforma? Sim e não. Se fosse possível, o ideal seria votar primeiro a nova Previdência, que é só para o futuro, mais fácil de explicar e de passar. Depois, a parte dos funcionários públicos. Só eles. Porque aí ficariam no palco, com a iluminação ligada, e teriam que explicar por que defendem tanto seus privilégios. Por que se aposentam com salário integral? Reajuste igual ao da ativa?
O terceiro passo seria o INSS, e mostrar que o pobre já se aposenta por idade mínima, de 65 anos. Nada mais justo que 65 para todo mundo.
O ideal seria fatiar nessa ordem. Mas qual é o governo que conseguiria ganhar três batalhas de PEC [proposta de emenda constitucional, que precisa ser aprovada por dois terços dos parlamentares] num mesmo ano?
O trade-off é este: enviar tudo junto, com alto risco de ter que ceder em pontos importantes, ou algo mais seguro, mas mais difícil de passar.
Sua proposta retira parte da Previdência da Constituição. Não é uma faca de dois gumes? Não facilita mudanças que agravam as contas públicas?
É um dilema que temos enfrentado desde 1988. A ideia de vincular tudo, para que ninguém mexa. Prefiro tratar tudo em legislação complementar ou ordinária, porque essa é a função do Congresso. Quer mudar? Faz um grande debate e vota. Qual o sentido de congelar tudo na Constituição e depois não conseguir mexer?
Raio-X
Hélio Zylberstajn, 73, é professor da Faculdade de Economia da USP, especialista em mercado de trabalho, pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e coordenador de uma proposta de reforma da Previdência enviada ao governo Bolsonaro
Fonte: Folha SP