Um dos maiores especialistas brasileiros na área, o professor Oswaldo Luiz Alves fala à nova edição impressa do Jornal da Ciência sobre o estágio de desenvolvimento das pesquisas no País e os obstáculos que impedem uma maior disseminação
Protetores solares, cremes, fármacos. A nanotecnologia já está sendo aplicada na produção de itens como estes, mas não só. Ela também está presente em diversos outros produtos do nosso dia a dia que não têm nada a ver com medicina e cosmética. Equipamentos eletrônicos telefones celulares, “players” de música, televisores e telas de alta definição), sistemas de iluminação e de sensoriamento/tratamento de água são alguns exemplos citados pelo professor Oswaldo Luiz Alves para demonstrar a proximidade da nanotecnologia.
“A lista é grande”, avisa Alves, um dos maiores especialistas brasileiros em nanotecnologia. Professor titular e decano do Departamento de Química Inorgânica do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 45 anos de docência Alves orientou mais de 50 mestrados e doutorados. Pesquisador 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ele é autor de mais de 250 artigos publicados em periódicos científicos, os quais totalizam mais de 8.600 citações (Google Acadêmico), além de ter mais de 25 patentes depositadas, sendo 7 internacionais, 5 concedidas e uma licenciada, esta última referente a uma tecnologia voltada à remediação de efluentes de indústrias chapeleiras e têxteis.
Segundo ele, que fundou e coordena o Laboratório de Química do Estado Sólido (LQES), na Unicamp, hoje o Brasil está bem posicionado na pesquisa da área, porém ainda existe um “gap” importante na passagem desse conhecimento para utilização pelas empresas. Nesta entrevista exclusiva ao Jornal da Ciência, ele conta sobre os avanços e as perspectivas da nanotecnologia para o País.
Jornal da Ciência – Como surgiu seu interesse por nanotecnologia?
Oswaldo Luiz Alves – Quando participei do Projeto Fibras Ópticas, financiado pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD) da Telebrás, e recebemos a demanda para produzir vidros especiais, dopados com “quantum dots”, para aplicação em telecomunicações ópticas. Estávamos no final dos anos 1980. Realizamos a publicação sobre a síntese, caracterização e propriedades destes vidros dopados em 1991, na prestigiosa revista Applied Physics Letters. De lá para cá, continuamos a trabalhar mais e mais com a nanotecnologia.
JC – Recentemente, durante a 71ª Reunião Anual da SBPC (em julho, em Campo Grande-MS), o senhor disse que, embora pareça distante, a nanotecnologia já está em ação, possui diversas aplicações que facilitam o dia a dia e que já é utilizada em vários produtos. Pode citar algumas aplicações mais próximas do dia a dia?
Alves – Sim, mas antes de colocar alguns exemplos, acredito que seria mais interessante tratarmos a nanotecnologia no plural. Na verdade, existem várias nanotecnologias que são aplicadas aos mais diferentes setores científicos e industriais. Com relação às aplicações mais próximas do dia a dia, podemos citar a área de cosméticos, onde temos os protetores solares e cremes dermatológicos; equipamentos eletrônicos, tais como telefones celulares, ‘players’ de música, televisores e telas de alta definição; medicamentos – vacinas, formulações de produtos oncológicos e drug delivery (sistemas concebidos para a entrega eficaz de moléculas terapêuticas em variados alvos); sistemas de iluminação em geral (LED); de tratamento e sensoriamento de água e gases; remediação ambiental de efluentes industriais; próteses e órteses, entre outros. Na verdade, a lista é muito grande, existem produtos produzidos no Brasil e importados.
JC – O senhor poderia contar um pouco sobre como surgiu a nanotecnologia no Brasil?
Alves – A história é muito longa. Resumindo, no final dos anos 80, alguns grupos de pesquisa no Brasil trabalhavam pequeníssimas estruturas (algumas dezenas de nanômetros, lembrando que 1 nanômetro equivale ao bilionésimo do metro, ou seja, 10-9 do metro, ou ainda o equivalente a aproximadamente 70.000 vezes menor do que o diâmetro de um fio de cabelo). Naquela época não se chamava nanotecnologia, e sim sistemas mesoscópicos. Nossa contribuição, naquele momento, estava ligada ao estudo de semicondutores nanoestruturados para aplicações ópticas.
JC – Havia infraestrutura para esse tipo de pesquisa?
Alves – Desde o início da utilização do termo nanotecnologia (final dos anos 90) e do seu consequente interesse pelos diferentes grupos de pesquisa nacionais, sempre vivenciamos uma situação muito interessante. De fato, rapidamente começamos a publicar internacionalmente, o que causava certa perplexidade em alguns colegas estrangeiros. Na verdade, o que aconteceu foi que naquele momento o Brasil já tinha uma razoável infraestrutura de pesquisa que podia ser apropriada pela nanotecnologia, derivada de vários programas de pesquisa anteriores, tais como o Programa de Materiais Avançados, o Programa de Química para Materiais Eletrônicos e o Programa de Novos Materiais, entre outros. A evolução continuou, com altos e baixos, muito em função da questão do financiamento.
JC – Como o País está posicionado hoje?
Alves – Podemos dizer que o Brasil está bem posicionado, com muita atividade, sobretudo em pesquisa básica, com um nível de publicação relevante e atuando em várias temáticas de fronteira. Não temos dúvidas de que poderíamos estar mais longe, todavia, isto não aconteceu devido a uma situação bastante conhecida da comunidade científica brasileira: as descontinuidades do financiamento. O sistema SisNano (Sistema Nacional de Laboratórios em Nanotecnologias), recentemente encerrado, permitiu durante os últimos cinco anos (2013-2018) um avanço destacado de vários Laboratórios Estratégicos e Associados.
JC – Quais as áreas em que o País está mais desenvolvido?
Alves – Vale lembrar que o “coração” das nanotecnologias são as famílias de nanomateriais. Dentre elas, temos os “novos carbonos” (nanotubos de carbono, fulerenos, carbon-dots), nanotubos inorgânicos, nanopartículas metálicas, materiais 2D, nanocelulose. Todas elas têm papel importante, tanto para ciência básica, quanto para a ciência aplicada. Em todas essas especialidades existem grupos de pesquisa com alto grau de competência atuando no País. É bem verdade que muitos deles têm um diálogo ainda bastante tímido com os diferentes setores industriais brasileiros, a despeito de várias iniciativas de aproximação e programas de pesquisa conjuntos. Também foram feitos avanços importantes na área de nanomedicina, desenvolvimento de agentes antibacterianos e nanotoxicologia que tem levado a publicações internacionais seminais nestas áreas.
JC – Em quais há potencial para desenvolver mais?
Alves – Certamente existem várias áreas que podem apresentar elevado potencial de desenvolvimento em função da presença de diferenciais competitivos importantes, como nas especialidades químicas (tintas, revestimentos e catalisadores); petróleo e gás (processamento) e recursos naturais sustentáveis (insumos para materiais nanotecnológicos), entre outros. Vale destacar as áreas de nanotoxicologia e nanosegurança, pois dependem delas, dentro da perspectiva da regulação, a efetiva possibilidade para a comercialização dos produtos que “embarcam” as nanotecnologias.
JC – Qual a relação/impacto do projeto Sirius com a nanotecnologia?
Alves – Tem tudo a ver. A conexão são exatamente os nanomateriais. As facilidades que teremos disponibilizadas para a caracterização das nanoestruturas, suas propriedades e aplicações estarão, simplesmente, no estado da arte. Não tenho dúvidas de que a operação deste laboratório “mega-science” levará a ciência e a pesquisa científica brasileira a um novo patamar de protagonismo mundial, propiciando uma fertilização cruzada entre Química, Física, Biologia, Medicina e Engenharia. As nanotecnologias serão potencializadas na solução de problemas de energia, meio ambiente, agricultura, novos materiais e materiais multifuncionais, desenvolvimento de nanofármacos e sistemas de drug delivery, desenvolvimento de catalisadores e outros no limite de nossa criatividade.
JC – Como as empresas brasileiras estão absorvendo essa nova tecnologia?
Alves – As possibilidades das nanotecnologias ainda não são bem conhecidas pela maioria das empresas brasileiras. A interlocução ainda apresenta dificuldades de compreensão técnico-científica, lembrando que se trata de uma tecnologia disruptiva e que tem quebrado muitos paradigmas. As questões de insegurança jurídica estão sempre presentes, dado ainda não termos, pelo menos em nosso país, um robusto processo de regulação. Não obstante, temos vários casos de sucesso de empresas brasileiras que estão apostando e fazendo investimentos nas nanotecnologias, procurando ficar bem posicionadas para o momento em que essas atividades venham ser reguladas. Algumas delas já comercializam seus produtos no exterior, submetendo-se às normas e regulações internacionais, tais como as normas da OCDE e o Tratado Reach, que vigora em todo território europeu.
JC – Como a crise do financiamento da Ciência e Tecnologia afeta o desenvolvimento da nanotecnologia no Brasil?
Alves – De uma maneira muito preocupante. O Programa Nacional SisNano, que é o principal indutor da Nanotecnologia no Brasil, abriu este ano um edital com o valor de R$ 6 milhões para financiar Laboratórios Estratégicos e Laboratórios Associados. Guardadas as devidas proporções, o Programa Nacional americano destinou US$ 1,4 bilhão em 2019. É difícil comentar esses números, mas fica aqui o dado de realidade. A redução drástica de investimentos não somente em termos de financiamento às atividades, como também na diminuição de bolsas de estudos, acaba por ter efeitos letais não só ao desenvolvimento das nanotecnologias, como da ciência e tecnologia e inovação do país como um todo.
JC – Quais as consequências?
Alves – Experimentos em andamento são interrompidos por falta de recursos para manutenção e aquisição de insumos, laboratórios e equipamentos começam a ficar sucateados, a população dos laboratórios diminui, comprometendo suas atividades e projetos. O pior de tudo: nossos alunos mais talentosos formados e treinados no País acabam indo para laboratórios no exterior, que normalmente têm políticas agressivas de contratação de pessoal e melhores condições para desenvolver atividades de C&T. Em muitos casos, verifica-se a transferência de conhecimentos científicos e tecnológicos pioneiros para fora do País, por conta deste momento. Vivenciei esta situação pessoalmente e recentemente e posso testemunhar que ela é altamente frustrante.
Janes Rocha – Jornal da Ciência
Fonte: FNE