Usava bota, calça comprida e carregava uma arma na cintura. Atirava para o alto sempre que fosse necessário se fazer respeitada numa obra. Assim a primeira engenheira negra do Brasil e a sexta profissional a se formar na área no País, no ano de 1945, Enedina Alves Marques, se portava ao atuar em campo, na construção da Usina Hidroelétrica Capivari Cachoeira no início dos anos 1950, como descrito por pesquisadores. Descendente de escravizados, ela compõe a lista de pioneiras que, com coragem e ousadia, desbravaram o caminho a partir da primeira década do século XX para que as mulheres sigam conquistando seu espaço em uma profissão cuja predominância ainda é masculina em 2020.
Em todo o País são atualmente 960.888 engenheiros registrados no Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea). Desses, cerca de 18% são mulheres (174.236). O índice, mesmo bastante aquém quando se pensa em igualdade de gênero, representa avanço na participação feminina nos últimos anos.
A presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Sorocaba, Fátima Blockwitz, corrobora: “Embora as mulheres ainda tenham que lutar por espaço e representatividade, tem havido mudança. Há empresas que até preferem contratar engenheiras, por entenderem que são mais focadas. Além disso, elas são mais aceitas e se colocam mais naturalmente, de maneira mais livre na profissão, sem ter que abrir mão de sua feminilidade.”
Blockwitz – que se formou em Engenharia Civil em 1983 numa turma em que aproximadamente 10% eram mulheres – percebe essa diferença em relação a sua própria trajetória. Embora obviamente não tenha tido a necessidade de portar arma na cintura, como a pioneira Enedina Marques, ela revela: “Usei a vida inteira botina e calça comprida e assumi uma postura mais masculina para ser respeitada em obras.”
Primeira mulher a assumir há dois anos a diretoria da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) – a qual hoje conta 127 anos de existência –, Liedi Bernucci complementa: “As jovens têm mais informação e estão cada vez mais interessadas nos cursos de engenharia, mas o aumento ainda se dá numa proporção muito lenta. Quando ingressei na Poli, em 1977, éramos 4%. Passados 43 anos, são 20% de um total de quase 5 mil alunos.”
Maior presença, mas ainda discriminação
A coordenação do Núcleo Jovem Engenheiro do SEESP demonstra o avanço na participação feminina. “São oito mulheres numa equipe de 15”, orgulha-se a coordenadora estadual, Marcellie Dessimoni. Formada engenheira ambiental e sanitarista em 2015, ela observa que tem havido nos últimos anos esse “engajamento” às áreas de Exatas.
A outra face, contudo, é que ainda há discriminação de gênero. “Escutei uma vez em sala de aula: ou se nasce mulher ou engenheira. Os dois é impossível. Mas seguimos lutando pelo nosso espaço, e este cenário está mudando.”
Engenheira mecânica formada em 2018 e atuando como assessora técnica da Secretaria da Justiça de São Paulo, Jéssica Trindade Passos constata que há aumento progressivo da presença feminina na área. Mas é enfática: “Durante todo o curso ouvia piadinhas, tinha questionada minha capacidade. Ainda enfrentamos muita discriminação, inclusive em relação a salário.” É o que comprova o estudo Estatísticas de gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018: as mulheres com ensino superior ganham 25% menos do que os homens no Brasil.
Na ótica de Leidiaane Costa, engenheira civil formada em 2019 e em busca de uma oportunidade na área, além disso, a “mulher é mais testada em sua capacidade”. Em seu caso, enfrentou, desde a faculdade em São Paulo, discriminação maior, por ser de “raízes mais humildes e nordestina”. Uma maneira que encontrou de lidar com isso era “levar tudo na esportiva”. Mas não há nada de divertido em sofrer preconceito. Assim como ela, Tamiris Pinheiro da Silva ressalta: “Embora hoje seja um pouco mais fácil, ainda há dificuldades por ser mulher, negra e de classe baixa.”
Dessimoni faz um chamado às empresas “por mais diversidade nos canteiros de obras e na indústria nacional. Com nossa capacidade e conhecimento, vamos quebrar barreiras e continuar essa luta que é histórica, até a igualdade.”
Atrair as meninas
Para acelerar esse processo, Bernucci afirma que é preciso intensificar o estímulo às meninas, desde os ensinos fundamental e médio. Segundo ela, instituições que fizeram programas para atrair jovens à engenharia, ciência e tecnologia obtiveram resultados muito positivos. Caso do MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos, número um do mundo na área, que conta cerca de 40% de mulheres na graduação. “Outra instituição top naquele país, a Universidade de Cornell, tem em seus cursos de engenharia 50%.”
Sob esse horizonte, diversas entidades e universidades no Brasil têm enveredado por esse caminho nos últimos anos, como a própria Poli-USP. “Na semana de 8 de março, faremos diversas oficinas para jovens.”
Conforme Bernucci, contudo, esse esforço tem que ser coletivo, com a participação dos vários setores da sociedade, inclusive empresas e escolas de primeiro e segundo graus. “Para que haja mudança cultural e elas não enfrentem mais preconceito. Que sua escolha não seja vista como exceção”, enfatiza.
Em publicação intitulada “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática”, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) destaca que garantir que meninas e mulheres tenham acesso igualitário à educação e, “em última instância”, a carreiras nessas áreas é “um imperativo de acordo com as perspectivas de direitos humanos, científica e desenvolvimentista”.
Fonte: FNE