“Fantasmas” que, apesar de estarem em todos os lugares, quase não interagem com a matéria e atravessam inclusive nossos corpos, aos bilhões. Essa misteriosa partícula é o neutrino, que acaba de ter uma importante característica revelada. A massa do neutrino mais leve foi estimada como sendo ao menos 6 milhões de vezes mais leve do que a massa de um elétron. O estudo liderado pela University College London (UCL) foi feito em colaboração com o Institut d’Astrophysique de Paris, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a USP, e publicado no periódico Physical Review Letters – além de ser destacado pela revista Nature.
“Sabemos como o neutrino afeta a distribuição de matéria no Universo”, diz Arthur Loureiro, pesquisador da UCL e primeiro autor do artigo, ao explicar como dados de galáxias puderam ser incluídos entre as fontes do modelo matemático que revelou esta informação sobre a massa partícula.
E por que esse conhecimento fará tanta diferença para os físicos? Compreender melhor neutrinos e os processos pelos quais eles obtêm suas massas pode ajudar a responder importantes perguntas sobre o nosso Universo. Isso inclui como galáxias se distribuem, por que o Universo está se expandindo de forma acelerada e do que é feita a matéria escura, que ainda é uma incômoda desconhecida da ciência – o próprio neutrino já foi cogitado como a partícula da matéria escura.
Além disso, compreender como a massa dos neutrinos pode ser estimada é de fundamental importância para telescópios em desenvolvimento, como o Dark Energy Spectroscopic Instrument (Desi) e o Euclid. O Desi irá estudar a estrutura em larga escala do Universo e o que ele contém de matéria e energia escuras com alta precisão. Já o Euclid é um telescópio que está sendo construído pela Agência Espacial Europeia (ESA) para mapear a geometria do Universo escuro e a evolução de estruturas cósmicas.
Sorvete napolitano
No mundo das partículas subatômicas, como é o caso do neutrino, são as leis da mecânica quântica – e não clássica – que regem a matéria. E estas leis nem sempre são intuitivas. Uma partícula, por exemplo, pode se converter em outra coisa, ou adquirir uma certa massa, e voltar ao estado inicial com a mesma rapidez, e é por isso que a estatística é um dos métodos mais usados por quem estuda física quântica. Fala-se em probabilidades.
Os neutrinos aparecem na natureza em três “sabores” diferentes: neutrino elétron (os que são produzidos no Sol); o neutrino múon e o neutrino tau. Cada um deles é composto de uma mistura de três diferentes massas de neutrinos. Apenas a diferença entre estas massas era conhecida até então, com pouca informação a respeito da massa da espécie mais leve.
“Sabemos muito pouco sobre os neutrinos. O que sabemos é que quando eles se movem, há uma probabilidade de mudarem entre uma das três versões. E isso só pode acontecer se ao menos duas de suas massas forem maiores que zero”, diz Arthur Loureiro, que é ex-aluno do Instituto de Física (IF) da USP.
Ele usa como analogia o sorvete napolitano: ao pegar uma colherada, temos os três sabores sempre presentes, mas em diferentes proporções. “Essa mudança em proporções e em sabor – e em consequência, o estranho comportamento dessas partículas – só pode ser explicada por neutrinos tendo massa”, explica Loureiro, ao lembrar que o conceito de neutrinos terem massa é relativamente novo, comprovado por uma descoberta de 1998, e ainda não foi possível incorporar este dado ao Modelo Padrão, que até agora é a teoria mais bem consolidada sobre a estrutura da matérias e as forças que interagem com ela.
Mas entre saber que os neutrinos possuem massa e determinar com precisão seu valor, há um largo caminho. O que o estudo fez, de maneira inédita, foi determinar um limite superior para a massa do neutrino mais leve. “Quando pudermos medir a massa do neutrino mais leve, vamos conseguir preencher algumas lacunas nas teorias que tentam explicar a origem da massa do neutrino”, explica Loureiro.
Também ficaremos mais próximos de entender dois fenômenos sobre os quais não sabemos praticamente nada: a matéria escura e a energia escura. Ambas se fazem conhecer somente pelos seus efeitos. A matéria escura deve existir porque só a massa da matéria visível não seria suficiente para manter as galáxias unidas como são. Já a energia escura deve ser a causa da expansão acelerada do Universo, um fenômeno constatado, mas não explicado. O Big Bang explica a expansão – mas se não houvesse nenhuma energia atuando, essa expansão estaria se desacelerando, por uma questão de inércia.
Vale lembrar que, apesar do neutrino já ter sido considerado um candidato à matéria escura, essa hipótese já foi descartada. “Um pouco do que, antigamente, achávamos que era matéria escura, hoje sabemos que são neutrinos, mas bem pouco”, conta o pesquisador. Mas ele ainda é chamado por alguns de matéria escura quente porque, quando surge, do decaimento de outras partículas no átomo, sai a velocidade muito altas, próximas à da luz.
De qualquer maneira, “ainda precisamos levar em conta o quanto do Universo é composto por neutrinos para sabermos com precisão o quanto é matéria escura”, explica o cientista. Além disso, ele diz que a teoria que vier para explicar a massa de neutrinos deve também nos ajudar a entender o que é a matéria escura, já que ambas são extensões do Modelo Padrão de física de partículas.
Big Data
Para vencer este primeiro desafio, que foi calcular o limite superior da massa, o time de pesquisadores utilizou uma abordagem inovadora usando dados públicos coletados por cientistas das áreas de cosmologia e física de partículas. O que inclui dados de mais de um milhão de galáxias do Baryon Oscillation Spectroscopic Survey (BOSS) para medir a taxa de expansão do Universo e medidas de experimentos como aceleradores de partículas.
“Neutrinos são extremamente abundantes, porém muito pequenos e evasivos, então nós precisávamos de qualquer pedaço de conhecimento disponível para estimarmos as suas massas”, diz Loureiro, ao explicar que foram utilizadas informações de uma variedade de experimentos e fontes, como telescópios espaciais e terrestres que observam a primeira luz do Universo (a radiação cósmica de fundo), supernovas, o maior mapa 3D de galáxias do Universo, aceleradores de partículas e reatores nucleares, entre outros.
As informações foram utilizadas em conjunto para preparar um quadro de análises no qual a massa dos neutrinos pode ser computada individualmente utilizando um modelo matemático simples. “A equipe utilizou o supercomputador da UCL, Grace, para calcular que a maior massa possível para o neutrino mais leve deve ser menor que 0.086 eV (com 95% de confiança), o que é equivalente a 1.5 x 10-37 Kg. Também foi estimado que a massa das três espécies de neutrinos juntas deve ter um limite superior de 0.26 eV (também com 95% de confiança)”, descreve.
“Nós utilizamos mais de meio milhão de horas de processamento para analisarmos os dados; isto seria equivalente a 60 anos em um único processador. Este projeto elevou os limites para análise de Big Data em cosmologia”, diz Andreu Cuceu, aluno de doutorado da UCL e segundo autor do artigo. Eles ressaltam ainda que o método pode ser aplicado a outras grandes questões intrigantes em cosmologia e física de partículas.
O professor Ofer Lahav (UCL), coautor do estudo e presidente dos consórcios britânicos do Dark Energy Survey e do Desi, diz que “é impressionante como a distribuição de galáxias em imensas escalas pode nos dizer a respeito da massa do neutrino mais leve” e que este é um resultado de fundamental importância para a física. “Este novo estudo demonstra que estamos no caminho para realmente medirmos a massa dos neutrinos utilizando a próxima geração de grandes levantamentos de galáxias espectroscópicos como o Desi, Euclid e outros”, conclui.
O artigo Upper Bound of Neutrino Masses from Combined Cosmological Observations and Particle Physics Experiments pode ser acessado neste link.
O estudo teve participação do pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP Henrique Xavier.
A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através de bolsas do Ciências sem Fronteiras, pela Sociedade Astronomia Real, Conselho de Instalações de Ciência e Tecnologia Britânico (STFC), Sociedade Real e pelo Conselho Europeu de Pesquisas.
Fonte: Jornal da USP