Stefano Quintarelli, 53, é um dos precursores dos estudos de internet na Itália. Participou do desenvolvimento do primeiro provedor no país e acompanhou as transformações que a rede passou do fim dos anos 80 até hoje.
Integrante do grupo de inteligência artificial da Comissão da União Europeia, instituição que representa politicamente o bloco, Quintarelli já foi membro do Parlamento italiano, onde propôs o conceito de neutralidade de dispositivos (device neutrality, em inglês) — que dá o direito de usuários instalarem ou excluírem os aplicativos e programas que desejarem em seus dispositivos eletrônicos.
Em fevereiro, Quintarelli lançou o livro “Instruções para um futuro imaterial” (Editora Elefante, 304 páginas). Ele discorre sobre adaptação às transformações guiadas pela tecnologia nas últimas duas décadas e sobre o papel da regulação econômica na fase pós-smartphone.
O que é futuro imaterial? Não gosto do termo mundo virtual. Virtual vem do latim e implica um mundo que não é real, mas potencial, enquanto tudo que estamos vivendo é bem real, porém não material. O dinheiro na sua conta é imaterial, mas real.
Não podemos separar o mundo assim, então chamo de dimensão imaterial e material, que são complementares. Depois da democratização do smartphone, nos últimos 12 anos, a dimensão imaterial se tornou a principal interface para a material.
Quais as características dessa dimensão? Ao mesmo tempo em que a internet descentralizou a informação e colocou inteligência em todos os pontos, trouxe vigilância, abusos de privacidade e uma personalização que nos impede de enxergar a sociedade da mesma maneira que antes.
Os países costumavam ter alguns jornais de esquerda, alguns jornais de direita, e um entendimento geral do que a sociedade pensava. Hoje, você sabe o que enxerga e o que recebe de informação, mas não tem ideia do que as outras pessoas veem e do chega até elas. Em termos econômicos, a dimensão imaterial tem um custo marginal insignificante se comparada à material.
Pode explicar? Produzir as coisas custa muito mais na dimensão material do que na imaterial, e isso gerou uma transformação social profunda. A dimensão imaterial dá feedback o tempo inteiro, coleta dados o tempo inteiro e personaliza serviços e informações.
A imprensa sofreu pelo custo marginal zero da internet, por exemplo. Como os jornais tradicionalmente investem em estruturas e processos para disseminar as informações, precisam cobrir os custos com anunciantes. Esses, por sua vez, decidem quanto querem pagar por um anúncio na internet. Em um caso você tem custo e determina o preço, em outro você não tem custo marginal e seu cliente determina o preço. São bases muito diferentes.
A dificuldade de adaptação de alguns setores não é comum a transformações econômicas, como as que ocorreram no passado? Nunca tivemos um movimento parecido. A mudança de hoje tem uma natureza completamente diferente porque alterou o sentido de propriedade privada.
Refiro-me ao movimento dos últimos 12 anos. A compra de um livro envolvia características ligadas à materialidade: você poderia revender e emprestar. Hoje, você compra o direito de ler e perde o de emprestar e vender. Na dimensão imaterial, você não tem a propriedade. Não compra mais um objeto, cumpre obrigações.
Há problema nisso? Sim, à medida que todas as instituições e empresas são substituídas por uma intermediação algorítmica que tende ao monopólio ou ao oligopólio. O que defendo é que usuários tenham controle sobre seus dados.
O conceito de neutralidade da rede determina que os operadores da infraestrutura não controlem a comunicação da rede; vou além, defendo neutralidade em dispositivos e aplicações. Todos os usuários têm o direito de instalar ou desinstalar os programas e apps que desejarem em suas máquinas —mas acabamos presos a poucas empresas.
Além disso, as informações das pessoas devem ser portáteis. Posso decidir mudar de um provedor a outro e de uma rede social a outra e pedir a transferência dos meus dados. O poder de controle da economia não deveria estar na indústria oligárquica, mas na mão de quem elegemos para nos representar.
Você defende novas regulações? Não necessariamente novas regulações, mas intervenções e modernizações. As grandes empresas já estão sendo multadas.
As leis demoram um tempo a se desenvolver. Você pode decidir criar uma regra para WhatsApp no Brasil e logo verá que problemas parecidos ocorrem no Telegram. Nada precisa ser preto no branco; você pode fazer adaptações e propor aplicações diferenciadas a startups e a grandes empresas, por exemplo.
Críticos mais liberais dizem que elas espantam negócios. A Europa não ficará para trás na inovação? A GDPR [Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE] está sendo copiada ao redor do mundo e as empresas não fogem da Europa porque há regulação lá. A plataforma de música mais importante do mundo não é o Google, é o Spotify, da Suécia. Estamos falando pelo Skype, europeu.
Muitos fatores são limitadores na Europa, mas se quisermos culpar a regulação que seja a fiscal. O aspecto importante é financeiro. Só a cidade de San Francisco tem 10 vezes mais venture capital do que a Europa. É muito fácil encontrar dinheiro lá porque eles pedem para você levar sua companhia aos Estados Unidos e ficar sujeito ao sistema judicial deles.
É superficial culpar a regulação. Uma série de unicórnios nascem na Europa e vão pegar dinheiro no Vale do Silício.
Você trabalha com internet desde o princípio. Como superar a imagem distópica que opinião pública enxerga na rede hoje? De um destino não podemos fugir: tudo que puder ser conectado será conectado, todo dado que puder ser armazenado será armazenado e toda informação que puder ser processada será processada.
O que podemos alterar são os efeitos disso, e a única forma que penso é por meio da política e de mudanças em quadros regulatórios que possam se adequar aos desejos da sociedade. A tarefa básica da política é essa.
Fonte: Folha SP