“Segurança, confiabilidade e neutralidade” são as palavras associadas à certificadora alemã TÜV SÜD e sua marca, o octógono azul, cuja inspiração é supostamente a proteção fornecida por um casco de tartaruga. Pois bem, a tartaruga alemã veio ao Brasil e afundou sua reputação na lama. Em junho e setembro de 2018 a empresa declarou a Barragem I da mineradora Vale em Brumadinho como estável, apesar de evidências em sentido contrário. O que pode ter levado profissionais altamente qualificados e uma corporação do porte da TÜV a deslizarem?
A TÜV SÜD remonta a uma associação de inspeção técnica formada por engenheiros e empresários alemães para avaliar a segurança das máquinas produzidas na esteira da revolução industrial. Entidades deste tipo operaram por muitos anos monopólios regionais, sem fins lucrativos. Quando da unificação da Alemanha e da liberalização do mercado de certificação, transformaram-se em sociedades anônimas, livres para expandir internacionalmente e gerar mais receita. Nos últimos 20 anos a TÜV SUD se estabeleceu nas Américas e na Ásia e hoje possui mais de 24 mil funcionários próprios pelo mundo. A busca por novos mercados levou a empresa a realizar tanto certificação “soft”, de serviços de atendimento ao consumidor, quanto a inspeção de produtos alimentícios, maquinário e barragens. A crítica por trás desta expansão é que a busca por lucro tenha levado a TÜV a atuar “mais como o departamento de marketing externo das empresas do que como o auditor”.,
No caso de Brumadinho, a relação da TÜV com a Vale aparenta estar no mesmo patamar de “faz de conta”. A estratégia de crescimento da empresa pela aquisição de negócios locais pode ajudar a compreender desvios da reputação alemã. Quando chega ao Brasil, em 2012, a TÜV SÜD adquire duas companhias nacionais, o SFDK Laboratório de Análise de Produtos, focado em auditoria para os setores de alimento, bebidas, beleza e saúde e, em 2013, a Bureau de Projetos e Consultoria Ltda., que atuava desde 1988 na área de engenharia consultiva, em serviços de monitoramento geotécnico e estrutural, bem como projetos de infraestrutura e mineração, envolvendo, por exemplo, barragens de rejeitos.
O CEO atual da TÜV SÜD Brasil, sua diretoria e os empregados mencionados nas investigações de Brumadinho são todos brasileiros. Sem questionar a competência dos profissionais nacionais, é preciso observar uma variável importante: o selo de qualidade estrangeiro não foi automaticamente importado, porque a empresa não instalou operações no vácuo, mas aproveitou a estrutura existente e absorveu funcionários e práticas enraizados no âmbito local. A reputação e expectativa de independência e imparcialidade é mediada pelo contexto institucional e setorial em que a TÜV se insere, que no caso da mineração no Brasil é concentrado, pouco transparente e fiscalizado por um órgão extremamente suscetível a corrupção e fraude, segundo auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União1. Esses elementos, combinados com o faturamento bilionário do segmento, oferecem um cenário fértil para desvio organizacional, como iremos argumentar.
Por desvio organizacional, que se difere do individual pois os atores agem em benefício da organização, nos referimos ao comportamento desconforme com regras formais que pautavam a atuação dos profissionais envolvidos no caso da barragem da Mina de Feijão, podendo elas ser internas ou externas à corporação. No âmbito externo, o art. 225 da Constituição Federal é norma geral de proteção ao meio ambiente. Especificamente, ao realizar auditoria para atestar ou não a estabilidade de uma barragem, os funcionários da TÜV e equipe técnica da Vale devem atentar-se às diretrizes estabelecidas pela Lei de Segurança de Barragens (Lei n. 12.334/2010), com destaque para a Portaria n. 70.389/2017 da Agência Nacional de Mineração (ANM) sobre planos de segurança, revisão e inspeção periódica de barragens que veio preencher as lacunas regulatórias escancaradas após o desastre em Mariana.
As regras formais de conduta que poderiam ter prevenido o desastre e também as que poderiam garantir a não repetição – como o dever de informação arguido nas class actions movidas pelos shareholders no âmbito internacional e o princípio da precaução, um dos pilares da responsabilidade civil ambiental – foram ignoradas e não surtiram o efeito desejado.2 Ao revés, o discurso oficial do presidente da Vale S.A. de que a barragem possuía tanto a sua licença ambiental quanto a declaração de condição de estabilidade sugere que as normas geraram estratégias adaptativas entre os ora responsáveis no setor da mineração.3 As investigações, até o momento, apontam uma sequência de atos desconformes: pela esfera pública, responsável pela gestão e fiscalização das licenças de instalação e operação da Barragem I, mas principalmente por ambas as empresas, as quais trataremos aqui.
No âmbito interno, tanto a TÜV quanto a Vale S.A possuem Códigos de Ética vedando conflito de interesses e concorrência desleal. No entanto, ao não proibirem expressamente situações de conflito que possam resultar em ganho para a organização, as normas internas deixam uma lacuna aberta para o crime corporativo, comportamentos alinhados aos interesses da empresa. Deslocamos do nível das estruturas normativas para focar em seus membros à procura de evidências sociológicas.
A Bureau foi fundada pelos engenheiros Rui M. e Arsênio N., colegas de mestrado na Inglaterra e ex-presidentes da ABMS (Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica), o primeiro em 1984-86 e o segundo em 2011-12. Os engenheiros que declararam a estabilidade da barragem de Brumadinho, e por isso foram detidos em fevereiro, integram a primeira geração da empresa, atuando desde muito antes da compra pela TÜV. Também os outros 3 engenheiros da TÜV que tiveram sua prisão requerida pelo Ministério Público Federal (MPF) por suposto conluio com a Vale são anteriores a 2013 e foram socializados na cultura da Bureau. A própria nota sobre o acidente publicada na página oficial da certificadora alemã confirma a bipartição das empresas ao dizer “TÜV SÜD Bureau de Projetos e Consultoria Ltda.”
As biografias do time da Vale citado nas investigações também apresentam semelhanças.4 Na carreira, funcionários com média de aproximadamente 11 anos na empresa, média alta que é indício de adesão à cultura organizacional, e na formação, os 19 são engenheiros (de produção, de minas, geólogo), uma área do conhecimento técnico-científica. Enquanto os executivos responsáveis pela tomada de decisões estratégicas e mais próximos da sede tem MBA, a pós-graduação dos quadros operacionais é principalmente em Geotecnia. Seis dos engenheiros envolvidos em Brumadinho tem passagens pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), onde a Vale investiu 4 milhões em convênio para criação do Centro Tecnológico de Geotecnia. Outras relações colaterais existem com o episódio de Mariana, reunindo Peter P., Silmar M., Lucio C. e Rodrigo M.5 Mas as afinidades entre os integrantes da Vale de um lado e aquelas dos da TÜV, por mais coesas internamente que tornem as empresas, não explicam potencial conflito de interesse. Para isso é preciso olhar evidências da interação entre as duas organizações e seus sujeitos.
O fundador da TÜV SÜD Bureau, Rui M., trabalhou ainda enquanto consultor independente em diversos projetos para a Vale. Arsênio N. participou do descomissionamento de uma das minas da companhia pouco antes da compra pelo grupo alemão, ao lado de Makoto N. A equipe da Bureau já publicou em duas oportunidades artigos conjuntos com funcionários da companhia mineradora sobre casos em que atuou como contratada: o primeiro na Mina de Cachoeira e o segundo na Barragem de Itabiruçu. Este último, que tem Marilene L. e Felipe R. como coautores, ambos detidos por suposto envolvimento em Brumadinho, venceu o prêmio José Machado da ABMS em 2018. A cerimônia de entrega do prêmio foi no mesmo período que: 1) a Tractebel se negava a atestar a estabilidade da barragem com base nos estudos da TÜV indicando baixo fator de segurança; 2) Felipe R. apresentava os Resultados do Gerenciamento de Riscos Geotécnicos ao Painel de Especialistas Internacional nomeando as estruturas com risco de rompimento e incluindo o prêmio em uma das lâminas de sua apresentação; 3) o mesmo time do octógono azul responsável pelos estudos de liquefação assume a concessão da DCE sabendo que as condições não permitiam descartar que a barragem corria sérios riscos de romper.
E o que pode ter levado os agentes a atestar a segurança e desviar das normas? Duas são as hipóteses possíveis: I) os indivíduos esperavam obter ganhos pessoais; ou, II) agiram conforme os objetivos das organizações. Não temos evidência de benefícios individuais no caso, mas o pertencimento a redes comuns poderia indicar sinais desse tipo. Já o depoimento de um dos funcionários da TÜV sobre a pressão da Vale e o receio de perda do contrato, e a possibilidade levantada pelo diretor da TÜV Bureau de maquiar o resultado para evitar chantagem da contratante são indícios da segunda. O argumento da diretoria da Vale de que o sistema operacional de barragens seria descentralizado e funcionaria por delegação, replicado uniformemente na defesa dos funcionários da Vale detidos, também sugere lealdade à companhia, apesar do alto custo pessoal. A “autonomia” dos responsáveis operacionais locais, no entanto, é posta em cheque pelo comportamento de Alano T. e Lucio M., que teriam dito “é muita gente envolvida e empregos” a um funcionário que alertou para a necessidade de evacuar a barragem. Os três faleceram enquanto trabalhavam.
O impacto das regras informais que legitimam comportamentos opostos à lei e moral varia de acordo com a organização. Só podemos olha-lo a partir da conduta observada e ação dos agentes. Caso o rompimento não tivesse ocorrido talvez a Mina de Feijão também fosse tema de publicação conjunta entre Vale e TÜV, e as práticas desviantes teriam sido úteis para os atores e empresas igualmente, mas os ganhos pessoais seriam mínimos se comparados à utilidade para as organizações, por isso afirmamos a hipótese II. Nesta, benefícios individuais indiretos previstos pela empresa, tais como promoção na carreira, bônus e reputação já são considerados.
Após o rompimento em Brumadinho a TÜV revoga a declaração de estabilidade de uma barragem da Vale e comunica formalmente os gestores responsáveis do risco de rompimento de outra. A Vale só toma providências após provocação da ANM, acionada pela Polícia Federal com as informações repassadas pela certificadora. O compliance na TÜV parece se intensificar depois do colapso, inclusive mediante recusa pública a emitir futuras DCEs e levantando incertezas sobre o sistema à luz “de todas as regras e filosofia da empresa”. Em contrapartida, a coesão interna na Vale se acentua na reação de que “está buscando no mercado outras empresas para fazer auditorias em suas estruturas” e na declaração de Fabio Schvartsman “A Vale é uma joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu numa de suas barragens”.
Não é culpa da cultura brasileira, a TÜV em outros países na Europa e na Ásia já foi alvo de acusações e suspensão por fraude e conluio; tampouco é exclusividade da empresa alemã, pois outra auditora externa, a VOGBR, teria atestado estabilidade de barragem em condições idênticas às da Mina de Feijão. Coincidência ou não a mesma certificadora declarou estável a barragem de Fundão em Mariana e foi indiciada por crimes ambientais. Também não se trata de ausência de regulamentação, embora “flexibilizar” a legislação ambiental seja um retrocesso ainda maior. Acontece, no entanto, que elevar as apostas nas regras formais pode ter 2 efeitos indesejados: 1) distrai a atenção nos comportamentos dos agentes envolvidos que se sujeitaram à riscos pessoais significativos em vista de objetivos da organização; 2) ignora que se nem todos os shareholders tem acesso irrestrito às instituições quem dirá os stakeholders, ainda mais distantes da elaboração das normas e do processo decisório no Executivo e Judiciário.6
O setor da mineração, seu deficit de transparência, os agentes que nele operam, com alto nível de homogeneidade, e a trajetória da Vale S.A, marcada por um ufanismo protecionista persistente apesar dos episódios de violações de direitos, criaram um ambiente onde regras informais, não escritas, incentivaram o desvio. Admitir que o desvio organizacional ocorrerá quando presentes os requisitos propícios e não é uma ou algumas maçãs podres que contaminam o cesto, convida a sociedade a pensar no cesto, e sobre ele exercer controle social, e obriga as instituições a reinterpretarem o sentido de “responsáveis”, sob pena do cenário permitir que a história continue se repetindo.
——————————–
1 A Agência Nacional de Mineração (ANM), quando comparado o seu poder de regulação com a sua estrutura, demonstra estar muito aquém do ideal. Subordinada ao Ministério de Minas e Energia, é função da ANM a fiscalização de todas as atividades de mineração, através de auditorias próprias e análise dos laudos e registros apresentados, como a declaração de condição de estabilidade (DCE) apresentada por funcionários da TÜV SÜD. Por falta de recursos, porém, ela segue dependendo de laudos realizados por empresas contratadas pelas próprias mineradoras. A fiscalização foi terceirizada para a própria fiscalizada.
2 Lei 6.938/81, Política Nacional do Meio Ambiente; Lei 9.605/98, Lei de Crimes Ambientais; Decreto 5.514/2008, sobre sanções administrativas ambientais; e o próprio Código Penal, além das inúmeras reclamações em relação a violação de direitos Humanos e tratamento dos afetados pelos desastres, como ocorreu em face da criação da Fundação Renova e a dispensa de indenizações.
3[1] Niklas Luhman, Funktionen und Folgen formaler Organisation, Berlin, 1964, p. 304.
4 O recurso à elaboração de perfis sociais coletivos dos atores é um método emprestado da História pelos cientistas sociais chamado prosopografia.
5 Peter P. responde investigação criminal e intermediou a negociação na qual surgiu a Renova, Silmar M. é testemunha de defesa e representa a Vale no Conselho de Administração da Samarco, Lucio C. já era diretor de planejamento e ferrosos e já esteve no Conselho da Samarco, Rodrigo M. era o gerente das usinas do Complexo da Alegria que despejava rejeitos de minério de ferro em Fundão sem autorização e foi indiciado por Mariana.
6 A força do lobby da bancada da mineração no congresso e no executivo se confirma na recente declaração de que o governo autorizará mineração em terras indígenas à revelia dos sujeitos coletivos.
MÁRIO H. JORGE JR. – pesquisador do grupo Estudos de Crimes Organizacionais e integra o projeto Crime Corporativo e Corrupção Sistêmica no Brasil (DFG-FAPESP), no Max-Weber-Institut für Soziologie da Universidade de Heidelberg. Advogado, mestre em Direito pela Universidade de Augsburg e doutorando em Direito pela Humboldt-Universität zu Berlin.
MARIA EUGENIA TROMBINI – pesquisadora do grupo Estudos de Crimes Organizacionais e integra o projeto Crime Corporativo e Corrupção Sistêmica no Brasil (DFG-FAPESP), no Max-Weber-Institut für Soziologie. Cientista social e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Sociologia na Universidade de Heidelberg.
Fonte: Jota