Os cursos de engenharia do país precisam passar por mudanças no currículo para formar profissionais capazes de lidar com os desafios trazidos pela indústria 4.0 — conceito que engloba a adoção de tecnologias digitais nos processos fabris.
Essa é a avaliação da Confederação Nacional da Indústria (CNI) que, com outras entidades, tem participado da discussão de propostas para as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de engenharia, sob responsabilidade do Conselho Nacional de Educação.
Em debate há quase dois anos, as novas diretrizes passam a valer para todos os cursos da área do Brasil assim que forem aprovadas e homologadas pelo Ministério da Educação, o que ainda não tem um prazo para acontecer.
“O setor industrial gera emprego para os engenheiros e sabe apontar quais as carências dos profissionais recém-formados”, diz Gianna Sagazio, diretora de inovação da CNI.
Segundo ela, o desafio é que os alunos coloquem a mão na massa durante a graduação e trabalhem em projetos que busquem soluções para problemas reais das empresas.
“É importante incorporar as tecnologias digitais aos currículos, como big data e internet das coisas”, afirma.
Alguns dos principais pontos das novas diretrizes propostas são a formação por competências e habilidades (que permita ao aluno saber aplicar em situações reais os conteúdos aprendidos), o desenvolvimento de soft skills (capacidade de liderança e comunicação, por exemplo) e o uso de metodologias ativas de aprendizagem (como o ensino baseado em projetos).
“Outra novidade é o incentivo ao empreendedorismo”, diz Antonio Freitas, relator da comissão das DCNs de engenharia. “Em um mundo onde o emprego formal ficará mais escasso, pois todo o trabalho repetitivo deverá ser realizado por máquina, ao profissional caberão as partes nobres: a criatividade e a capacidade de interagir com pessoas”, diz.
Para Vanderli Fava de Oliveira, presidente da Abenge (Associação Brasileira de Educação em Engenharia), outro órgão envolvido na elaboração de propostas para as diretrizes, o aspecto empreendedor não se refere só à criação de uma empresa.
“O engenheiro deve empreender em seu local de trabalho, gerir pessoas, melhorar a qualidade e aumentar a produtividade”, afirma.
Freitas ressalta que o foco das novas diretrizes não são as melhores graduações do país, que, em geral, já desenvolvem essas práticas, mas os cerca de 6.000 cursos do Brasil.
Uma das instituições que já se preocupam com a inovação e o empreendedorismo dos alunos é o Insper, em São Paulo, que oferece três cursos de engenharia: computação, mecânica e mecatrônica.
“A maioria dos engenheiros são preparados para pensar na viabilidade técnica. Mas não adianta ter uma solução técnica fantástica se ela não for viável economicamente, não chegar ao mercado ou não atingir as pessoas”, diz Irineu Gianesi, diretor de assuntos acadêmicos do Insper.
Outra questão essencial, segundo ele, é o olhar para o usuário. “Conhecer as pessoas, sua cultura e entender suas demandas é fundamental para pensar em soluções.”
O currículo do Insper, desenhado em parceria com a Olin College (EUA), inclui atividades práticas desde o início da graduação. “No primeiro semestre, os alunos constroem uma estação meteorológica e precisam ir atrás dos conhecimentos necessários para realizar esse projeto. Isso mexe com a motivação do aluno”, exemplifica Gianesi.
Maria Clara Lorenzetti Luques, 21, estudante do terceiro ano de engenharia mecatrônica no Insper, diz que se surpreendeu ao ter aulas práticas logo no primeiro semestre.
Ela desenvolveu em grupo um projeto de brinquedo, um robô. “Aprendemos a pensar em quem vai usar o produto. Na engenharia clássica, isso se perde um pouco”, diz.
Também com foco na atualização do ensino, a Poli (Escola Politécnica) da Universidade de São Paulo fez uma mudança curricular em 2014. Uma das alterações foi proporcionar maior proximidade dos ingressantes com disciplinas específicas da engenharia, para já terem contato com sua futura especialidade.
Outro ponto foi abrir espaço na grade para disciplinas optativas, tanto da Poli como de outras faculdades da USP. “Isso garante uma formação mais ampla e flexível”, diz Fabio Cozman, presidente da Comissão de Graduação da Poli.
Vanderli Oliveira, da Abenge, considera importante esse olhar amplo. “Hoje, os problemas são mais multidisciplinares, pois envolvem questões ambientais, éticas, legais.”
Ainda que a modernização do currículo dos cursos de engenharia seja um consenso, algumas propostas das novas diretrizes têm sido criticadas.
Joel Krüger, presidente do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), diz que o principal ponto de conflito é que as propostas deixam em aberto a forma que serão trabalhados conteúdos essenciais para o engenheiro, como matemática e física.
“Corre-se o risco de ter cursos de engenharia deficitários nessas áreas”, diz.
Para Cozman, da USP, o foco nas competências é mais produtivo do que o foco no conteúdo. “É o que acontece com o Enem. No entanto, é preciso que as competências sejam bem definidas.”
Segundo Gianesi, uma questão importante é que as diretrizes, ao não trazerem uma lista de conteúdos obrigatórios, colocam para as escolas a responsabilidade de justificar como o seu currículo vai atender as competências.
De acordo com Oliveira, há uma preocupação de que as escolas diminuam a carga de disciplinas básicas. “Mas não tem como desenvolver as competências sem uma forte base em matemática, física e computação. Curso que não tem essa base não é engenharia é ‘enganaria’”.