O ano de 2018 no Brasil foi marcado pela greve dos caminhoneiros, em grande parte motivada por descontentamento com o mecanismo de determinação de preços de combustíveis. O impacto sobre a economia foi estimado em R$ 100 bilhões (IBRE FGV). No setor de eletricidade, há também insatisfação com níveis de preços, refletida inclusive nas palavras do Ministro Moreira Franco e do Diretor Geral da ANEEL, André Pepitone. Esse problema é agravado pelas expectativas de aumento nas tarifas da eletricidade na casa de dois dígitos em 2019.
Reformas e Tarifas de Eletricidade
Na década de 1990 o Brasil embarcou no movimento de reformas liberalizantes em indústrias de rede. Promoveram-se privatizações, principalmente na distribuição de eletricidade. Houve abertura e entrada de capitais privados na geração e transmissão e criação de um regulador independente em meados da década de 90. A reforma foi incompleta e em 2001-2 o país enfrentou racionamento. Sob a administração do presidente Lula, um Novo Modelo foi implementado em 2003-4, focado na expansão do sistema. Ele também acelerou a expansão do acesso à eletricidade combinado com conjunto de outras políticas distributivas. Elas incluem promoção de energias renováveis e suporte à geração a partir de combustíveis fósseis, principalmente nos sistemas isolados.
O funcionamento do setor elétrico no Brasil permite às firmas recuperarem seus custos de operação (OPEX) e investimentos (CAPEX). Esse é um estágio avançado de maturidade da indústria. Grande parte de países com economias emergentes ao redor do mundo depende de suporte e transferência de recursos do contribuinte na forma de subsídios para energia, não raro com impacto significativo sobre as finanças públicas.
No Brasil, a reforma no setor de eletricidade nasce sob o pressuposto de que o setor deveria permitir a recuperação dos custos (OPEX e CAPEX) a partir da cobrança de tarifas aos usuários. Essa não é a realidade, por exemplo, no setor de saneamento. Talvez resida aí uma das explicações para os lentos avanços na cobertura desses sistemas, que assistem a sucessivos adiamentos de metas de universalização.
No setor elétrico, o modelo implantado após 2003 proporcionou a expansão do sistema, tanto da capacidade instalada como da rede. Porém, a despeito da modicidade tarifária perseguida, resultaram em em tarifas excessivamente altas. Para enfrentar os efeitos perversos sobre a competitividade da economia, em 2012 mudanças importantes foram introduzidas por meio da Medida Provisória no. 579. As medidas adotadas combinavam renovação de concessões (sob o pressuposto de que a operação de ativos já amortizados proporcionaria tarifas menores), aportes do Tesouro para mitigar impacto nas tarifas e a junção dos encargos em um único remanescente – a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), instituída em 2002.
A redução média de 20% nas tarifas prometida pela Presidente Dilma em 2012, operacionalizada de forma intervencionista pela MP 579, não perdurou. A queda em 2013 foi anulada em dois anos, em meio à crise hidrológica severa. A recessão e a crise fiscal motivaram uma reversão das tarifas a partir de 2015, e o realismo tarifário trouxe apresentou aos consumidores sucessivos reajustes de dois digitos.
O que explica o comportamento das tarifas de eletricidade?
A decomposição das tarifas de energia elétrica revela que a regulação por incentivos das redes de distribuição promoveu ganhos de eficiência que se refletiram aumentos abaixo da inflação para este segmento. Contudo, outros componentes contribuíram significativamente para o crescimento das tarifas após 2003, principalmente encargos e impostos.. No ano de 2017, a título ilustrativo, encargos e tributos responderam por cerca de 50% das contas pagas pelo consumidor de eletricidade.
Com mais de 99% dos usuários conectados, os serviços de eletricidade figuram como os mais tributados na economia. A base sólida e ampla de consumidores facilitam a fiscalização, ajudando a explicar tarifas elevadas e crescentes. Ao mesmo tempo, trata-se de “excelente” veículo para financiar políticas distributivas, que incluem, mas não se esgotam em: descontos para irrigantes e aquicultores, consumidores de baixa renda, rural, companhias de água e saneamento, indústria de carvão mineral, fontes renováveis de geração, consumidores localizados em regiões remotas e no Norte do país.
Esgotamento do Sistema de Subsídios Cruzados na Eletricidade
O sistema de subsídios cruzados que está na base do funcionamento do setor elétrico no Brasil beira a exaustão. Com tarifas altas e reajustes crescentes, não resta outra alternativa senão buscar proteção. E grupos de intersse organizados, mesmo que pequenos, obviamente têm maiores chances de sucesso – não apenas em obter benefícios, mas em preservá-los, mesmo quando se extingue ou diminui a razão da concessão original.
Os encargos constituem grande veículo para políticas distributivas. A “reforma” de 2012 transformou a CDE no maior deles, abarcando desde desde o financiamento da geração a combustíveis fósseisa outras como a Reserva Global de Reversão (RGR), destinada a custear indenização de ativos não amortizados ao final da outorga.
Em 2016, o governo iniciou um processo que pretendia revisitar e racionalizar o sistema vigente de subsídios cruzados. As conclusões encontradas ressaltam: (i) a falta de estratégia de mitigação, seja na forma de política de saída, no limite para cobertura de recursos em termos de prazo ou montante ou de número de beneficiários enquadráveis; e (ii) as falhas de desenho, como ausência de mecanismos de avaliação de impacto, falta de foco em grupos mais necessitados, e permissão para que usuários acumulem benefícios uma vez que atendam os critérios de inclusão.
Uma análise desse sistema de subsídios revela também disparidades regionais perversas. Nos últimos quatro anos, 60% dos recursos da conta CDE foram destinados às regiões Sul e Sudeste, mais desenvolvidas.
Conclusão
As reformas implementadas no setor elétrico brasileiro tiveram êxito em reverter um quadro inicial de desequilíbrios financeiros e inadimplência quase generalizada. Do ponto de vista econômico-financeiro, proporcionaram um avanço para o setor: a cobrança de serviços de eletricidade aos usuários deve ser capaz de garantir o funcionamento e a expansão do sistema, sem recurso a subsídios do orçamento público.
Esse quadro foi alterado em 2012, quando se pretendia que o Tesouro ajudasse a financiar parte dos custos do setor, aportando inclusive recursos na CDE. A mudança se revelou insustentável. A crise fiscal de então levou à reversão do processo, acarretando elevações expressivas de tarifas, no que ficou conhecido como política de realismo tarifário.
Restou um sistema de subsídios cruzados, que agora distribui impactos entre consumidores de todo o país – no sistema anterior grande parte se dava entre consumidores de uma mesma área de concessão. Os beneficiários incluem pequenas distribuidoras, energias renováveis, consumidores de baixa renda, irrigantes e aquicultores, geradores de combustíveis fósseis, carvão mineral, sistemas isolados, dentre outros.
O sistema de determinação de preços de eletricidade é permeado por distorções, a despeito de esforços do governo e de intenções de aprimoramento que constavam de proposta recente de reforma para o setor. Subsídios cruzados entre grupos de usuários e regiões comprometem a capacidade de pagamento dos consumidores e a competitividade da economia.
Resultados concretos não foram obtidos nesse campo. Ao contrário, um dos poucos temas comuns na agenda de propostas dos principais candidatos à presidência foi uma proposta de Vale-gás – de racionalidade questionável e cuja implementação envolve elevados custos de transação. Ignora ainda que uma transferência na forma de vale-gás foi considerada na determinação do valor do programa Bolsa Família. No dia 01 de novembro foi apresentado novo Parecer sobre o Projeto de Lei do gás natural na Câmara dos Deputados, contendo proposta que institui fundo para expansão das redes de transporte e escoamento de gás – chamado Dutogás. Novamente tem-se uma proposição que carece de qualquer racionalidade econômica, beneficia empresas de gás com viabilidade questionável e ignora boas práticas internacionais para endereçar os problemas de alocação de riscos e financiamento de infraestrutura com o desenvolvido pela Comissão Europeia (TEN).
Resta a esperança de que a equipe de transição e o novo governo entendam a importância de reformar o sistema de subsídios de energia. As experiências de processo integrado – sentando na mesa (macro e micro) economistas, representantes de sistemas de proteção social, além dos setores de energia e meio-ambiente – e virtuoso – que englobe todas as fontes – têm potencial de produzir espaço fiscal e eficiência alocativa. Fundamental é também adotar uma estratégia de comunicação que informe e dê transparência ao processo e ao resultado, contrabalançando o poder de grupos de interesses específicos. Apenas este caminho é capaz de produzir ganhos sustentados de competitividade e bem-estar.
JOISA DUTRA – Diretora do FGV CERI. Ex-Diretora da ANEEL. Membro do Global Future Council on Energy do World Economic Forum.
Fonte: Jota