Investimentos previstos para o Porto do Pecém, no Ceará, tiveram o parecer de acesso à rede elétrica negado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
Investimentos que somam até R$ 128 bilhões estão com seu futuro incerto por um descasamento de oferta e demanda na rede elétrica brasileira. São projetos de data center e de usinas de hidrogênio verde no Porto do Pecém, no Ceará, que demandam grandes volumes de energia para funcionar e tiveram o parecer de acesso à rede negado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) sob justificativa de estabilidade da rede.
Os projetos são desenvolvidos pela empresa brasileira Casa dos Ventos, que promete instalar no local uma usina de hidrogênio verde de US$ 8,4 bilhões (R$ 49 bilhões) e um data center de R$ 50 bilhões, e pela australiana Fortescue, que planeja uma usina de hidrogênio de US$ 5 bilhões (R$ 29 bilhões).
As redes de transmissão de energia funcionam como estradas com determinada capacidade para circulação de caminhões, explica o professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, Nivalde de Castro. Elas não comportam um número muito grande de caminhões ou de veículos muito pesados. “Instalar esses novos projetos é uma decisão de investimento desconectada do planejamento das linhas de transmissão”, diz o professor.
Segundo o gerente da Fortescue no Brasil, Luis Viga, o Ministério de Minas e Energia (MME) vinha indicando que teria entre 1,6 GW e 3 GW disponíveis para a conexão de projetos industriais na região do Pecém. Mas, quando os pareceres de acesso chegaram ao ONS, eles foram negados. Foi indicado, então, que seriam necessárias obras de expansão no sistema.
Só a Fortescue pediu acesso para pouco mais de 1 GW. A Casa dos Ventos solicitou para 2GW. Juntas, elas estão demandando o equivalente a 1,4% da capacidade total de fornecimento de energia das usinas centralizadas do País.
Viga destaca que há urgência na liberação da conexão, porque o Brasil tem uma vantagem “temporária” para desenvolver projetos de hidrogênio verde. A análise é que, se esses empreendimentos demorarem para sair do papel, podem surgir novas tecnologias de baixa emissão de carbono, reduzindo a demanda pelo produto.
O diretor executivo da Casa dos Ventos, Lucas Araripe, explica que encaminhou pedidos para conectar seus projetos em duas subestações de energia no Porto do Pecém. Para uma delas, ele conseguiu liberação. Para a outra, não.
“No meio do ano passado, a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) divulgou que teria uns 2 GW de disponibilidade no Pecém. Contratamos três consultorias que confirmaram isso. Fomos surpreendidos com a visão do ONS de que não se pode conectar carga lá, fruto de um conservadorismo. A gente acha que dá pra discutir isso”, diz Araripe.
Na visão da presidente da Associação Brasileira do Hidrogênio Verde, Fernanda Delgado, o ONS tem adotado uma postura conservadora desde o apagão de 2023. O operador, porém, nega. “O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) atua em conformidade com os Procedimentos de Rede e cumpre rigorosamente suas atribuições em relação às solicitações de conexão ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Logo, é equivocada a afirmação de que o ONS vem agindo de forma conservadora. Os requisitos de confiabilidade e segurança com a operação do Sistema permanecem os mesmos”, afirmou em nota o ONS.
Ainda de acordo com Delgado, o Ministério de Minas e Energia (MME) solicitou que cálculos sejam refeitos e equipamentos analisados para ver se é possível abrir espaço na rede. A intenção é liberar 4 GW para projetos ultra intensivos em energia elétrica, como é o caso dos data centers e das usinas de hidrogênio.
“A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) tem de liberar um estudo que vai dizer quais obras precisam ser feitas para expandir esse sistema de conexão”, diz a executiva. “É como se a gente desse um passo para trás para dar dois para a frente”, acrescenta. Delgado reconhece que “a forma dos negócios mudaram”. “São projetos ultra intensivos em energia que não existiam antes. A indústria não está acostumada com isso.”
O estudo encomendado à EPE deve ficar pronto apenas no fim do ano, prazo considerado longo pelas empresas. “Oferecemos ajuda para ver se é possível adiantar a entrega. Quanto mais o governo consiga antecipar esse cronograma, mais cedo os projetos entram em linha”, diz Delgado.
A preocupação do setor é que a ampliação da rede de transmissão de energia só seja possível com a construção de uma nova linha, que ficaria pronta apenas em 2032. O Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC) – iniciativa do governo federal para impulsionar o setor –, no entanto, deve viger entre 2028 e 2032. Nesse período, as empresas de hidrogênio poderiam receber R$ 18,3 bilhões em incentivos fiscais. “Se formos esperar o cronograma de obras que temos hoje, talvez a indústria não consiga acessar esse programa”, destaca a executiva.
Nivalde de Castro, da UFRJ, pondera, porém, que os incentivos podem ser prorrogados. De acordo com ele, o problema de descasamento de oferta e demanda nas linhas de transmissão não decorre de uma falta de planejamento por parte do governo.
“O segmento de transmissão é o mais bem estruturado do setor elétrico”, destaca o professor. Ele lembra que os data centers e as usinas de hidrogênio verde fazem parte de novos setores da indústrias e que não faria sentido o governo ter criado, anteriormente, projetos para ampliar a rede de transmissão quando não havia demanda. Castro compara a situação à de navios muito grandes que, de repente, querem atracar em um porto. “O terminal vai dizer que não tem condição de receber. O ONS está pedindo tempo para fazer o planejamento. É claro que vai tentar acelerar esse processo, mas ele é lento.”
Castro lembra também que as empresas ainda não tomaram suas decisões finais de investimento. Há, portanto, um risco para o setor elétrico de construir as linhas de transmissão e depois elas não serem necessárias caso haja uma desistência por parte das companhias.
Em nota, o ONS afirmou que a integração de grandes consumidores aos sistemas elétricos “representa um desafio global e conectar esse montante de carga de forma segura é uma operação complexa”. “O planejamento de expansão do setor elétrico brasileiro é organizado a partir de estimativa de crescimento de carga com base em variáveis macroeconômicas e demográficas. Esse processo é feito por diversos entes do setor elétrico brasileiro. As grandes cargas, a exemplo de projetos de hidrogênio verde e data centers, são uma demanda recente, que se faz presente há cerca de um ano, e trouxe novas variáveis a serem consideradas. O Operador vem trabalhando em conjunto com o Ministério de Minas e Energia (MME) e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para viabilizar soluções estruturantes que permitam a futura conexão de novas cargas.”
A EPE confirmou que o estudo para inserção de cargas de hidrogênio no Nordeste deve ser concluído em dezembro. Disse ainda contar “com a colaboração de diversos agentes do setor elétrico, como transmissoras, geradoras, distribuidoras e consumidores livres, aos quais solicita informações e realiza consultas técnicas”. “A EPE tem mantido interlocução com associações ligadas à indústria do hidrogênio, cuja contribuição é bem-vinda, especialmente por meio do envio de informações técnicas, como modelagens elétricas dos eletrolisadores, que podem subsidiar as análises de desempenho dinâmico da rede no futuro. Ressalta-se que a elaboração do estudo é de responsabilidade da EPE, que integra essas contribuições ao processo técnico de forma coordenada e estruturada.”
O Ministério de Minas e Energia e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) não responderam aos pedidos da reportagem.
Fonte: Estadão