Até para a inteligência artificial (IA), segmento no qual as descobertas avançaram velozmente na última década, os últimos dois meses foram intensos. Em 30 de novembro, a OpenAI, uma startup americana fundada em 2015, tornou público o ChatGPT, uma ferramenta poderosa que inaugura uma nova fase na relação da humanidade com as máquinas e que traz implicações econômicas e sociais para os próximos anos.
O ChatGPT é um robô de bate-papo (chatbot) gratuito capaz de produzir texto e trazer informações sobre assuntos diversos. A complexidade das respostas e a sofisticação da organização do texto chamam a atenção. Ele é capaz de produzir discursos de casamento, e-mails corporativos, textos em formato jornalístico, listas de organização e código de computação – é só saber pedir do jeito certo, inclusive em português.
A capacidade deu notoriedade ao sistema, que passou a ser testado por milhões de pessoas. Segundo uma pesquisa da Similarweb, o ChatGPT alcançou 100 milhões de usuários ativos em janeiro, o que faz dele o serviço na internet com o crescimento de usuários mais veloz da história – atualmente é comum ele travar devido ao alto tráfego. Os casos de uso passaram a ser diversos.
O professor Christian Terwiesch, da Universidade de Wharton, aplicou o exame final do Master in Business Administration (MBA) de sua universidade, além do Exame de Ordem (uma espécie de “prova da OAB” nos EUA) e também do Exame de Licenciamento Médico dos Estados Unidos (USMLE). Em todos os casos, a máquina passou e reforçou os temores do mundo acadêmico sobre a necessidade de revisar os métodos de avaliação.
Já o site de tecnologia Cnet colocou o ChatGPT para escrever textos – e foi criticado por não avisar os leitores nem remover erros factuais. O BuzzFeed foi além: anunciou que vai usar os algoritmos da OpenAI para produzir parte de seus conteúdos um mês depois que demitiu 180 pessoas. Enquanto isso, a revista Nature publicou um editorial no qual considera o ChatGPT uma ameaça para a ciência transparente.
Conheça a inteligência artificial gerativa
O ChatGPT não é o primeiro chatbot “esperto” de que se tem notícia. No ano passado, o LaMDA, do Google, fez barulho quando um engenheiro da companhia afirmou que o sistema tinha desenvolvido consciência, algo refutado tanto pela empresa quanto por especialistas. O LaMDA, porém, nunca foi disponibilizado para uma grande audiência – startups como Character AI e Anthropic também têm ferramentas do tipo.
Mas, graças à popularidade alcançada nas redes sociais, o ChatGPT surge como o maior exemplo de um novo capítulo na IA.
“O ChatGPT abre uma nova era. Até aqui, os sistemas otimizavam a rotulação de dados. Agora, a IA é capaz de gerar conteúdo inédito, o que amplia as possibilidades criativas da máquina”, explica Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG)
Isso significa que os algoritmos que estão presentes na vida da maioria das pessoas, como o sistema do YouTube que sugere vídeos, era capaz de capturar tendências e fazer correlações a partir de dados já existentes. A nova geração de IA dá um passo além, criando novas informações – essa nova classe é conhecida como “inteligência artificial gerativa”.
Durante todo o ano passado, IAs gerativas ganharam espaço não apenas com a produção de texto. Em abril do ano passado, a OpenAI lançou o DALL-E 2, que gera imagens a partir de comandos de texto – o que inspirou uma geração de sistemas do tipo, como o Midjourney e o Stable Diffusion. Surgiram também sistemas capazes de gerar vídeo e até de clonar a voz humana. O ChatGPT serviu como o empurrão final para essa nova classe de sistemas.
Qual a importância do ChatGPT?
Não é só na produção de conteúdo que o ChatGPT representa avanço. A interface simples da ferramenta, no formato de um chatbot, possibilita a massificação de uma ferramenta poderosa. “Esses novos sistemas possibilitam o acesso precoce à tecnologia, dispensando habilidades de programação”, argumenta Soares.
Até aqui, sistemas de IA e grandes bancos de dados trabalhavam sob a tutela de programadores, cientistas da computação, engenheiros de dados e designers. As IAs gerativas conseguem trabalhar para qualquer pessoa, independentemente dos seus conhecimentos técnicos em computação.
O ChatGPT expõe a importância de grandes modelos de linguagem natural (LLM), bancos de dados gigantes usados para o processamento de texto escrito. Há alguns anos, o Google abriu a era dos LLM com o Bert, um sistema de compreensão de texto usado em produtos como a busca e o tradutor. Em 2020, a OpenAI chamou a atenção por tornar público o GPT-3 (abreviação de Generative Pre-trained Transformer), um modelo com 175 bilhões de parâmetros (representações matemáticas de padrões e tipos de texto) – o Bert tinha 110 milhões de parâmetros.
Assim, o ChatGPT usa como “cérebro” o GPT-3 (e a OpenAI já está trabalhando no sucessor, o GPT-4) e coloca nas mãos de usuários comuns um banco de dados poderoso, que só pode ser desenvolvido com mão de obra cara e infraestrutura computacional restrita.
Como ChatGPT muda empregos
Em 2013, os pesquisadores Carl Benedikt Frey e Michael Osborne, da Universidade Oxford, publicaram um estudo no qual estimavam que 47% das profissões nos EUA seriam afetadas por tecnologias de automação, como IA e robótica. Agora, a profecia pode não apenas se realizar, como abranger um número ainda maior de profissionais.
“Todas as profissões que trabalham com texto serão afetadas pelo ChatGPT”, afirma Edney Souza, professor de inovação, tecnologia e negócios digitais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). No mundo corporativo, cargos executivos e administrativos serão afetados. Áreas como educação, publicidade, jornalismo e direito também estão entre os alvos mais óbvios.
Edney Souza, professor de inovação, tecnologia e negócios digitais na ESPM
Não é só isso. Como o ChatGPT também consegue escrever código e fazer contas, áreas como computação, engenharia, arquitetura e design também podem sentir os efeitos. Com o avanço das IAs gerativas de forma geral, qualquer profissão que também trabalha com imagem e vídeo poderá ser impactada – alguns especialistas falam que essa nova era pode ter impacto inédito em profissões do ensino superior.
Um relatório de 2021 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que a adoção de IA pode aumentar as disparidades do mercado de trabalho entre aqueles que têm habilidade para usar IA e os que não têm. “Garantir que os trabalhadores tenham as habilidades certas para trabalhar com novas tecnologia é, portanto, um desafio para a política (dos países)”, diz o documento.
Isso tornou o ChatGPT e as IAs gerativas em um dos principais assuntos discutidos no último Fórum Econômico Mundial, em Davos. Além do impacto econômico, a corrida da IA pode alterar as forças geopolíticas globais. “(IAs gerativas) serão extraordinariamente importantes para a competitividade global e para a segurança das nações”, afirmou durante o evento Brad Smith, presidente da Microsoft e líder da companhia em IA.
Os países estão buscando formas de regular e absorver a tecnologia – a Europa é a região mais avançada nas discussões de legislações específicas. Há outras questões no processo que são muito importantes, incluindo regulação, ética, viés, transparência, direito autoral e bem-estar social. O principal desafio é lidar com a velocidade sobre como as coisas se desenrolam. “Esses sistemas ficarão ainda mais sofisticados, então é difícil dizer o que nos aguarda. Por enquanto, não é possível nem mesmo falar em estabilização das descobertas. Enquanto os LLM continuarem crescendo, teremos avanços ainda não imaginados”, afirma Soares.
Fonte: Estadão