A microeletrônica brasileira comemora um feito histórico em 2021: os 50 anos do primeiro circuito integrado nacional, desenvolvido em abril de 1971 por João Antonio Zuffo. Professor titular na área de Eletrônica do Departamento de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) até 2009, quando se aposentou, ele continua ativo, aos 82 anos, como professor sênior da instituição.
Integra suas contribuições à pesquisa e desenvolvimento nesse setor a fundação dos laboratórios da USP de Microeletrônica, em 1970, e de Sistemas Integráveis (LSI), em 1975. Também presidiu, desde a sua criação em 1998 até 2017, a Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico (LSI-TEC).
Entre as inúmeras homenagens e muitos títulos recebidos, Zuffo foi agraciado pelo SEESP em 1991 com o prêmio “Personalidade da Tecnologia” na categoria Informática.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro ele fala sobre essa longa e profícua trajetória – desde que foi fortemente “incentivado” pela mãe a trocar a química pela eletrônica após algumas explosões –, as oportunidades perdidas pelo Brasil no setor e aponta possibilidades para recuperar o prejuízo. Tais preocupações estão presentes também nos dois livros que está escrevendo sobre ciência e tecnologia, com previsão de lançamento para 2022. Nas obras, examina o caminho percorrido pelo País até aqui e descortina perspectivas para o futuro, inclusive os riscos potenciais dos avanços, como a possibilidade de inteligência artificial controlando a vida humana. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como foi o seu encontro com a engenharia?
A década de 1950 foi muito empolgante para as crianças. Era a época do ano geofísico internacional. Em 1958, os americanos iam lançar um foguete, o Vanguard, mas explodia toda hora, não conseguia sair do lugar e, nesse ínterim, os russos lançaram o Sputnik em outubro de 1957 e, em novembro, a Laika (cadela enviada ao espaço a bordo da Sputnik II, programa espacial soviético). Realmente entusiasmava, então eu prestei o concurso para a Escola Politécnica em 1959. Comecei com química, mas, aos 13 ou 14 anos, explodi o laboratório, então minha mãe me pôs compulsoriamente em eletrônica. Fiz o curso e comecei a trabalhar numa empresa que desenvolvia instrumentação para medicina nuclear e medidas da área de engenharia nuclear. Aprendi inclusive a parte de projetos, de amplificadores de potência. Essa empresa fabricava transistores que queimavam. Então, quando terminei o estágio, a tese de doutoramento foi exatamente esse problema.
Como se deu o desenvolvimento do primeiro circuito integrado brasileiro?
Houve uma visita de quatro financiadores à USP, e nós propusemos a construção do Laboratório de Microeletrônica, o que foi entusiasticamente aceito. Em abril de 1970 o montamos e então resolvi projetar o circuito integrado [em abril de 1971]. Ainda tenho aqui, e tenho a impressão que funciona até hoje. Não testei, mas como tenho circuitos eletrônicos que montei quando tinha 16 anos e ainda funcionam…
O que esse feito representou para a engenharia nacional?
O primeiro circuito integrado americano tinha sido feito, de forma mais rudimentar, há apenas 12 anos. Em 1971, o Japão não tinha indústria de microeletrônica; a Coreia nem pensava. Eu me lembro dos orientais fotografando, em 1967, a fábrica da Philco no Tatuapé, para você ter uma ideia. E depois tivemos várias fábricas de circuito integrado no Brasil. Em 1974, fundei o LSI-USP. Eu fazia a tese de docência e [abordei o problema] de quando houvesse o microprocessador com um milhão de componentes, pensei num sistema que pudesse ser expandido. Na época, tínhamos financiamento à vontade para pesquisa na área de tecnologia e fizemos o microcircuito de múltiplas camadas. E tivemos projetos muito importantes na indústria, como o da Itautec em 1981, previa [montar uma fábrica] com 2 mil doutores em 1990. O que o grupo falou: “Nós vamos montar uma empresa que vai ter prejuízo por dez anos e queremos abater no lucro do grupo Itaú.” Na época, o Ministro do Planejamento [Antonio Delfim Netto] não aceitou. Hoje, poderíamos ter uma empresa maior que a Samsung.
Quais foram os próximos passos do LSI?
No início da década de 1980, começaram a sair os microprocessadores mais sofisticados, uma linha 68.020 da Motorolla, de 32 bits. Então, em nível planetário, começou a surgir a ideia de fazer supercomputadores com um montão de microprocessadores: substituir o elefante por um exército de formiguinhas. No LSI entramos numa área de microeletrônica com multicamadas e circuitos integrados e em outra com projetos de supercomputadores baseados em microprocessamento. Na década de 1990, fizemos um novo projeto de desenvolvimento de realidade virtual para medicina. Aí começamos a trabalhar em computação paralela de maior porte. Em 1997, apresentamos na Super Computer em San José, na Califórnia. Foi um choque para os americanos, de um lado tínhamos a Nasa, em frente o Departamento de Defesa e do outro lado o Caltech (California Institute of Technology), com um computador cheio de fios, e o nosso arrumadinho. Passamos [o projeto] para a indústria. Quem ganhou [a licitação] foi a Elebra, que faliu, e aí passou para a Itautec, que fabricou essas máquinas durante quatro ou cinco anos.
Em 1998, chegou a época da realidade virtual, só que o computador de acionamento era fabricado pela Silicon Graphics, e eles pediram US$ 1,5 milhão. Eu só tinha US$ 150 mil para terminar o projeto. Aí pensamos: “Já fizemos o computador paralelo em number crush [de cálculo pesado]. Vamos tentar fazer o gráfico?” Aí o Marcelo (Zuffo, também professor da Poli e filho de João Antonio Zuffo) entrou no projeto e teve sucesso, funcionou maravilhosamente. Ele apresentou essa tecnologia em Santo Antonio em 2001 e foi ela que prevaleceu no mundo. No Brasil, fizemos um sistema de realidade virtual de voo e levamos a Bonn, na Alemanha. O prefeito quis comprar. Era mais barato vender a ele que trazer de volta. Depois, teve uma época em que a Petrobras quis implantar [o mesmo sistema] e foi perguntar a respeito aos alemães, que disseram “vá procurar o prof. Zuffo que ele tem a tecnologia”. Os próprios brasileiros não acreditam no Brasil.
Como foi o trabalho com projeto da TV digital?
Em 1999, 2000, a NEC nos procurou para fazer transmissões experimentais com o seu centro de pesquisas, então estabelecemos um link de TV Digital. Foi quando entramos na área e falamos da possibilidade de ter um sistema brasileiro, num consórcio de 11 universidades. Fizemos a primeira transmissão experimental com a colaboração do Mackenzie, que tinha um transmissor no [bairro do] Sumaré, [em São Paulo]. Recebemos as imagens na USP. Estavam Ethevaldo Siqueira (jornalista e consultor especializado em telecomunicações, eletrônica de entretenimento e novas tecnologias da informação) e o ministro das Comunicações Miro Teixeira assistindo a essas transmissões. Havia também um grupo no Rio desenvolvendo o que chamavam de midleware, o projeto Ginga e, por fim, acabou saindo uma série de versões privadas das empresas multinacionais. O sistema [pensado originalmente] permitia até 11 canais. A ideia era subdividir o canal de alta definição em múltiplos de definição média para ter até televisões de comunidades locais, mas infelizmente não foi o caminho que as coisas seguiram.
Como o senhor vê o nosso cenário hoje no Brasil em ciência e tecnologia? Por que não avançamos após tantos projetos bem-sucedidos?
Por pura falta de visão dos nossos políticos. Atualmente, falta financiamento para pesquisa tecnológica e científica. E a interligação entre universidade e indústria é muito difícil, tanto que o pessoal chama de vale da morte. Precisa ter um acoplamento estreito. A ideia do LSI-TEC foi exatamente essa, estabelecer essa ponte. [E tivemos dois grandes problemas]. Em 1982, a quebra do México e, na década de 1990, uma abertura de mercado insensata, sem contrapartida. Perdemos o pé. Foi dada muito pouca importância à tecnologia e à ciência, além das outras áreas acadêmicas. Foi um suicídio o que o Brasil fez. Teve uma iniciativa brilhante com a criação do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em 1951] e voltamos para trás. O Consenso de Washington nos enterrou.
Há janelas de oportunidades para que o Brasil possa avançar tecnologicamente?
Acho que existem grandes possibilidades nas áreas de sensores e microssensores, com a Internet das Coisas e chips não sofisticados, projetados aqui e difundidos no exterior. Numa primeira fase, a difusão de chips no exterior não é pecado. Ainda temos capacidade de projeto, embora estejamos perdendo. A segunda coisa, eu entraria na área de energia fotovoltaica, com proteção para empresa nacional. A gente já dominava essa tecnologia em 1971, 1972. Eu procuraria fazer placas baratas, não precisam ser supereficientes. Armazenamento de energia também, é a coisa mais séria que temos. Porque gera eólica e fotovoltaica, mas não armazena e, por isso, tem que queimar óleo e carvão.
Há obstáculos que impedem seguir esses caminhos?
O grande problema do Brasil hoje é a área econômica com uma visão muito puramente financeira. Não pode olhar para o próprio umbigo sem olhar para as possibilidades estratégicas. Estamos entrando numa situação política que talvez seja favorável ao País, [com a disputa entre Estados Unidos e China]. Uma situação parecida que o Getulio Vargas aproveitou na década de 1930 para industrializar o Brasil. E agora voltamos para trás. Estamos destruindo a indústria. Teve a Lava Jato. Nenhum país destruiu as empresas de engenharia em situações assim. Não se monta uma estrutura de engenharia do dia para a noite. Então não se destroem as estruturas, pegam-se as pessoas que são corruptas. Isso é uma ação suicida. E isso não quer dizer que eu defenda os corruptos. Ninguém cresceu com ultraliberalismo, os países crescem incentivando as empresas nacionais. O pessoal fala em reforma, mas ninguém fala em reforma para aumentar a eficiência e a produtividade do Estado. Falta engenharia de Estado para otimizar as coisas no País. Como no Sul, [o caso do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), fábrica estatal de semicondutores localizada no Rio Grande do Sul que entrou em liquidação]. É como se não custasse nada a engenharia, é muito simples fechar. Eles até poderiam ser ineficientes, mas foi um problema de estratégia. A estrutura precisa ser mantida, o País está perdendo bilhões. Veja o que está acontecendo com a ciência nacional na área de biologia em que sempre fomos primeira linha, está uma falta de verba absurda. Não pode permitir faltar recursos, a prioridade tinha que ser as coisas feitas aqui, mas o pessoal acha que importando resolve.
O senhor está escrevendo um livro? Qual o tema e a previsão de lançamento?
Estou escrevendo um livro que se chama “Revendo o passado e pensando no futuro”. Eu examino os problemas que aconteceram no País desde [o acordo de] Bretton Woods, em 1944: como o Brasil se inseriu nessa situação, como se desenvolveu na década de 1960 e 1970 apesar de todas as crises, e faço uma projeção para o futuro. [Aponto] os problemas na década de 1990 e as oportunidades que perdemos na de 2000, quando tínhamos dinheiro, não foi feito o suficiente para que o Brasil crescesse; achavam que as
coisas cresciam sozinhas por moto perpetuo. Examino as falhas do ponto de vista de sistemas de engenharia. Estou trabalhando há dez anos no livro e estou quase no fim. Quero lançar em inglês e português simultaneamente, provavelmente no primeiro semestre do ano que vem.
A rigor, tenho dois livros [em andamento], outro de ficção científica e tecnológica que está pronto, preciso rever e lançar. Esse é uma forma de divulgação científica, mostrando as possibilidades dos próximos dez a 20 anos. Por exemplo, na década de 2030 será a sexta geração de telefonia celular. Eu já estaria trabalhando nisso. O pessoal está falando em realidade virtual aumentada holográfica. Na década seguinte, pode-se pensar em comunicação direta cérebro-máquina. A grande preocupação é a inteligência artificial assumir situações tendo o controle de tudo porque vai aprendendo com machine learning e agindo sem sentimentos.
Como fica a desigualdade social diante desses avanços tecnológicos?
Essa é uma preocupação que coloco no livro, porque o desenvolvimento tecnológico é fortemente concentrador de riqueza. Então é preciso saber o lugar que as pessoas com pouca instrução possam ocupar no futuro, precisamos de uma cruzada definitiva pela educação. E isso envolve a necessidade permanente de ter renda mínima. O auxílio que tivemos durante a pandemia, por exemplo, teria que ser permanente. Resolver essa situação envolve uma mudança drástica no sistema econômico. [Se nada for feito], no futuro, você vai ter uma classe alta extremamente rica e o resto da população na classe média para baixo, uma sociedade de castas. Infelizmente a tecnologia é concentradora de renda e de poder.
Assista ao vídeo da entrevista com João Antonio Zuffo:
Fonte: SEESP