Aprovada na Câmara dos Deputados na madrugada do dia 20 de maio último e encaminhada para deliberação no Senado, a Medida Provisória 1.031/2021, que viabiliza a privatização da Eletrobras, coloca na mira uma das empresas estratégicas ao Brasil. Não é a única: está em andamento uma onda de desestatizações também em outros setores, como óleo e gás, florestal, transportes (aeroportos, rodovias, portos e ferrovias), financeiro (bancos públicos e agências de fomento), correios e telégrafos, processamento de dados e comunicação, entrepostos e armazéns, mineração, além da liquidação do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec).Na 16ª Reunião do Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (CPPI), em 27 de abril último, foram incluídos 21 novos projetos na lista, totalizando 196.
Nas palavras do secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, este é “o ano das privatizações”. Assim ele se expressou, em celebração ao megaleilão de venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). As medidas são anunciadas pelo governo federal no site do PPI como garantias para “implementação de obras e serviços de base para melhorar a infraestrutura do País”.
Não obstante, a realidade é outra, para Antônio Corrêa de Lacerda, diretor da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FEA / PUC-SP) e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon). “A meu ver, a ideia do tal ‘Estado mínimo’, muito presente no discurso dos liberais, é falaciosa. Nem sempre privatizar representa uma solução, seja para a prestação de serviços ou para a questão fiscal. Muitos países, de fato, estão reestatizando empresas, pois a privatização não resolveu o problema. Portanto, temos que aprender com erros passados, nossos e dos outros, e evitar repeti-los”, enfatiza ele.
Segundo estudo intitulado “O futuro é público”, elaborado por pesquisadores reunidos no Instituto Transnacional, com apoio de diversas associações, mais de 2.400 cidades em 58 países reestatizaram serviços públicos entre 2000 e 2019, na Europa, Estados Unidos, Ásia e América do Sul, após observarem o fracasso nas privatizações. A edição brasileira foi realizada pelo Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas e pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal. O documento revela que a pandemia de Covid-19, em especial, expõe que “a dinâmica do mercado não deve ser aplicada às prioridades sociais e aos serviços públicos”.
Lacerda atesta: “O risco de uma privatização açodada é que, diante da fragilidade do marco regulatório, a sociedade fique à mercê de oligopólios e monopólios privados, o que lhes dá enorme capacidade de formação de preços e restrição na prestação de serviços.” Ele se queixa também da falta de debate sobre a questão.
Liquidação do Ceitec
O País distoa ainda das tendências globais ao anunciar a liquidação do Ceitec. “Anda na contramão mundial de governos TECh e abre mão do desenvolvimento tecnológico nacional. A maior perda será com atividades de P&D e de fabricação sobre silício; restarão apenas grupos de pesquisas em universidades que não podem ofertar nenhum produto em escala industrial ”, aponta o engenheiro Silvio Luís dos Reis Santos Junior, presidente da Associação de Colaboradores do Ceitec (Acceitec).
Com sua liquidação, de acordo com ele, o Brasil também perderá a capacidade de ter em uma única empresa recursos como micro e nanofabricação, testes em wafer [placas de semicondutores usadas como base para criação de chips processadores], encapsulamento, P&D de processos de fabricação e desenho industrial, bem como engenharia reversa.
“Significa um retrocesso tecnológico ao País. Ao longo de sua história, o corpo de pesquisadores dessa empresa acumulou um conjunto de competências e experiências diferenciadas e únicas no Brasil. Esses profissionais custaram caro à nação para serem formados e possuem mobilidade internacional. Se não houver perspectiva atraente de trabalho aqui, como no caso da liquidação da empresa, por exemplo, implicará a perda desses profissionais”, alerta Santos.
E ressalta: “O Estado brasileiro não deve renunciar às competências duramente adquiridas, caso contrário é o sinal de que o Brasil não deseja trilhar o caminho do desenvolvimento e independência tecnológica. Portanto, é o convite para a fuga de cérebros ou o abandono de suas áreas profissionais.” Atualmente o Ceitec conta 131 trabalhadores de carreira e dez comissionados, dos quais 76 especialistas em tecnologia eletrônica avançada e mais 15 técnicos em eletrônica, química, ambiental, industrial e mecânica.
Sua extinção, reforça Santos, “é um erro estratégico enorme para o País, porque está muito claro o quanto a economia de hoje depende dos chips e demais produtos da indústria de semicondutores. O Brasil não é autossuficiente nessa área, portanto nosso avanço econômico está totalmente dependente da tecnologia de outros países. O Ceitec é o embrião da nossa indústria de semicondutores, desenvolve todas as engrenagens da cadeia produtiva. Empresas como a HT-Micron foram atraídas pela sua existência, além do desenvolvimento de inúmeros fornecedores locais ou não de produtos e processos. Não há nenhum outro igual a ele no Brasil”. Para o presidente da associação, a decisão de liquidação está baseada em “um estudo fraco e que não considera a função social da empresa”.
Petrobras ameaçada
O cenário é vivenciado também na Petrobras, igualmente estratégica ao desenvolvimento do País e objeto de desmonte desde 2015. “A narrativa falaciosa é de que a empresa está quebrada. A Aepet [Associação dos Engenheiros da Petrobras] vem demonstrando desde então que isso é falso”, afirma Felipe Coutinho, vice-presidente da entidade. Segundo ele, causa “no mínimo estranheza” que a diretoria tenha essas informações e balanços e siga com o maior plano de privatizações da história, o qual vem sendo executado. “Até agora, foram cerca de US$ 35 bilhões de ativos da Petrobras vendidos a preços menores do que valem. A privatização promove a desintegração vertical e nacional, com graves consequências tanto para a empresa quanto para a sociedade e a economia nacional. Metade da capacidade de refino está na fila da privatização. O Brasil cada vez mais terá que exportar petróleo cru e importar derivados produzidos nos Estados Unidos, tendo capacidade nacional. Mais de 90% das nossas refinarias já processam, mas estão ociosas em até 30%.”
Isso, como explica, em função da chamada política de paridade de preços de importação (PPI), inaugurada em 2016. “Significa que vou ao mercado americano, vejo quanto custa um litro de gasolina, de diesel, GLP e pego esse preço como referência”, detalha Ricardo Maranhão, diretor da Aepet, à reportagem do JE. E não é só isso: agregam-se todos os custos de transporte e logística para trazer o produto ao País, inclusive portuários.
Em outras palavras, salienta Coutinho, pela escolha política arbitrária adotada, é como se o combustível fosse importado. “O preço de uma refinaria dos EUA está internalizado, o que deixa o Brasil vulnerável à variação do câmbio. Prejudica a Petrobras, que perde mercado, eficiência, competitividade e há retirada de parte da renda petrolífera do Brasil, além de diminuição da política de conteúdo nacional.” Como resultado, têm caído os investimentos da empresa. “De 1960 para cá, foram US$ 20 bilhões ao ano. De 2009 a 2014, em média, US$ 50 bi. No plano atual, US$ 11 bi ao ano. Compromete seu futuro, ameaça o desenvolvimento nacional e humano. É uma política contra o interesse nacional”, sublinha.
MP do Apagão
Consequências semelhantes serão observadas se confirmada a desestatização da Eletrobras, prevista na já denominada “MP do Apagão”, que será votada no Senado, onde está agora “a oportunidade e a responsabilidade de impedir que o equívoco se confirme ”, avisa Murilo Pinheiro, presidente do SEESP e da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE). Para a desestatização serão emitidas novas ações da Eletrobras, a serem vendidas no mercado, resultando na perda do controle acionário pelo governo federal. Está previsto que a União terá ação de classe especial, a chamada golden share, que lhe garante poder de veto em decisões da assembleia de acionistas. “Na prática, o Estado brasileiro, com objetivo míope, de curto prazo, pensando meramente em fazer caixa, abre mão da principal holding de energia da América Latina, responsável por 31% da geração e 47% da transmissão no País, que deu origem ao bem-sucedido sistema interligado brasileiro”, critica o dirigente.
José Antônio Latrônico Filho, diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado de Santa Catarina (Senge-SC) e presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas (Abee), corrobora a importância estratégica da Eletrobras, ao controle e regulação do sistema em momentos de escassez hídrica e uso múltiplo das águas, bem como à modicidade tarifária.
“Daqui a dez ou 15 anos a matriz energética vai mudar e teremos as modalidades chamadas intermitentes – eólica e fotovoltaica. Os grandes reservatórios da Eletrobras, com energia renovável e barata, podem complementar tal geração e minimizar o uso das termelétricas, mais caras. Teríamos uma energia 100% verde, podendo usufruir de melhores condições de financiamento internacional”, ensina.
Para Latrônico, que é engenheiro especialista em planejamento energético brasileiro, as linhas de transmissão da empresa são estruturantes, muito importantes não só para o País, mas a outras quatro ou cinco nações vizinhas. Também são cedentes de fibras ópticas. “Essa grandeza de valor não está sendo computada. As referências são as mesmas de 40 anos atrás. Se for feita uma revisão se verá que vale quatro vezes mais. Seus reservatórios estão sendo subavaliados. A empresa vem sendo muito mal tratada nos últimos 15 anos”, pontua.
Murilo critica ainda a opção pelo mecanismo de Medida Provisória, que deveria ser utilizado somente em situações de urgência: “Não tem cabimento que a entrega da Eletrobras seja decidida sem um debate transparente sobre suas consequências, com a participação da engenharia nacional, do setor produtivo e da sociedade como um todo.”
Consumidores ficam com a conta
A ampla discussão é imperativa, lembra ele, até porque um dos efeitos negativos imediatos possíveis, caso o processo se concretize, é “o aumento do custo da energia para os consumidores, tendo em vista que será extinto o regime de cotas que estabelece valores mais baixos na geração das usinas da empresa. Estudos indicam elevação de 14% na tarifa, somando, nos 30 anos das concessões que serão estabelecidas a partir da privatização, prejuízo da ordem de R$ 450 bilhões nas contas de luz”.
O histórico de desestatizações no setor a partir de 1995 reforça a preocupação, conforme aponta a advogada especialista em Direito do Consumidor, Flávia Lefèvre. “No caso específico da privatização da distribuição, os efeitos foram um aumento imediato no valor das tarifas, a redução da cobrança em cascata e o fim das políticas de tarifa social, o que levou ao crescimento descontrolado da inadimplência, com a desorganização das relações entre empresas e consumidores. A nova lei que estabeleceu a tarifa social só veio em 2010 (no. 12.212, de 20 de janeiro de 2010); ou seja, a política pública de atendimento aos mais vulneráveis só foi redefinida anos depois, pela ação de entidades de defesa do consumidor junto à Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] e ao Poder Judiciário, por meio de ações civis públicas. Além disso, desde a privatização tivemos eventos graves, como a crise de 2001 – o famoso ‘apagão’, assim como sucessivas medidas de recomposição tarifária extremamente benéficas para as empresas, ignorando os direitos dos consumidores.”
Ilustrativo também é o apagão que tomou conta do Amapá em novembro do ano passado, causado pelo incêndio numa subestação que deixou 90% dos cidadãos sem energia por vários dias em 14 dos 16 municípios do estado, em meio à pandemia. Segundo salientou Murilo, em sua coluna no site do SEESP, o flagelo social que acometeu a população local não se deveu a “catástrofes inimagináveis ou imprevisíveis, mas à irresponsabilidade com uma área absolutamente essencial à vida das pessoas e ao funcionamento das instituições públicas e privadas, como é o setor elétrico”. Responsável pela subestação em questão, a Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), pertencente à Gemini Energy, nova denominação da espanhola Isolux, observou ainda o presidente, está em recuperação judicial e já acumula ficha corrida de não cumprimento de seus compromissos como concessionária de infraestrutura.
Lefèvre lembra que energia elétrica é “um recurso estratégico para o País e por isso é importante que o Estado possa manter seu poder regulatório para que as empresas que exploram esse recurso possam atender as finalidades de políticas públicas e demandas da sociedade. A crise econômica que se instaurou com a pandemia de Covid-19 mostra os prejuízos de a distribuição de energia elétrica ter sido privatizada”.
A advogada complementa: “Ao invés de as empresas reverterem seus esforços para atender especialmente os consumidores de baixa renda, os que têm suas rendas reduzidas e que perderam empregos, com medidas como suspensão de cobrança, inclusive de encargos moratórios, entre outras, o que assistimos foi um aumento explosivo da tarifa, de modo a garantir o lucro das distribuidoras; isso sem falar na adoção de práticas abusivas, que têm revertido em uma enxurrada de reclamações nos Procons e Poder Judiciário.”
Soraya Misleh/ Jornal do Engenheiro